Ferramentas de pedra descobertas no sudoeste da China ajudaram um grupo misterioso a sobreviver em um ambiente frio e hostil há entre 60.000 e 50.000 anos. Mas quem as moldou? A resposta pode abalar o que se sabe sobre as origens humanas nesse período da Idade da Pedra, de acordo com uma nova pesquisa.
Arqueólogos que escavavam o sítio de Longtan, na província de Yunnan, na borda sudoeste do Planalto Tibetano, encontraram centenas de artefatos de pedra em duas trincheiras escavadas na argila avermelhada e siltosa da região.
A equipe de pesquisa determinou que muitas das ferramentas foram feitas no estilo conhecido como Quina, geralmente considerado uma marca arqueológica dos neandertais, uma espécie de humanos antigos. O estudo, publicado nesta segunda-feira (31) na revista Proceedings of the National Academy of Sciences, afirmou que esse estilo, ou complexo, nunca havia sido encontrado antes no leste da Ásia.
“A descoberta no sítio de Longtan é notável, pois documenta essa tradição específica a uma grande distância (pelo menos 7.000 ou 8.000 quilômetros) da região tradicionalmente associada a esse complexo tecno-cultural”, disse por e-mail o coautor do estudo Davide Delpiano, pesquisador de pós-doutorado em arqueologia paleolítica na Universidade de Ferrara, na Itália.

Os neandertais habitaram a Eurásia por cerca de 400.000 anos antes de desaparecerem há 40.000 anos, mas não há evidências de seus vestígios a leste das montanhas Altai, no sul da Sibéria.
Ossos e esqueletos deles já foram encontrados junto a ferramentas de pedra do tipo Quina em vários sítios da Europa Ocidental, incluindo La Quina, no sudoeste da França, que deu nome ao estilo. Quina é um dos vários estilos de ferramentas de pedra associados a essa espécie e classificados pelos arqueólogos como parte da cultura musteriense.
A descoberta sem precedentes em Longtan tem “implicações significativas”, afirmou Delpiano, levantando duas possibilidades concorrentes. Os neandertais podem ter migrado para o leste e chegado ao que hoje é a China, ou uma espécie diferente de humano antigo pode ter produzido ferramentas de pedra incrivelmente semelhantes às que estavam sendo feitas na Europa durante esse período, conhecido como Paleolítico Médio.
Ferramentas de pedra com implicações profundas
O conjunto de ferramentas descoberto em Longtan entre 2019 e 2020 inclui raspadores, usados para trabalhar couro ou madeira com uma borda afiada, pontas de pedra que podem ter sido fixadas a lanças de madeira e ferramentas com entalhes semelhantes aos de uma serra.
Na Europa, os neandertais usaram ferramentas de pedra do tipo Quina durante um período seco e frio, entre 60.000 e 50.000 anos atrás, em uma paisagem de bosques abertos. Esses utensílios teriam ajudado eles a caçar rebanhos migratórios de renas, cervos gigantes, cavalos e bisões, segundo o estudo.
As ferramentas Quina geralmente tinham um longo período de uso e eram frequentemente retocadas e reaproveitadas — o que sugere que foram uma resposta à escassez de recursos e a um estilo de vida altamente móvel, escreveram os pesquisadores.
A análise de grãos de pólen antigos de Longtan revelou que o clima e o ambiente no sudoeste da China eram semelhantes aos da Europa. No entanto, os autores do estudo não encontraram vestígios de animais no sítio, portanto, não se sabe se os humanos que viveram lá caçavam animais semelhantes, disseram.
“O conjunto de objetos Quina representa uma adaptação a estratégias de mobilidade altamente desenvolvidas: esses artefatos foram projetados para durar muito tempo, pois grupos humanos nômades eram forçados a buscar recursos que, devido às condições climáticas cada vez mais severas, estavam se tornando mais escassos”, disse Delpiano.
Era possível que os neandertais tenham chegado tão longe quanto o sudoeste da China, ou talvez tenham encontrado outras espécies humanas em seu território de origem, uma interação que permitiu que sua tecnologia de ferramentas de pedra se espalhasse para o leste, afirmou ele.
Fósseis da Caverna Denisova, nas Montanhas Altai, mostram que os neandertais viveram lá há cerca de 200.000 anos, aproximadamente na mesma época em que uma espécie aparentada, conhecida como denisovanos, habitava a região.
Os autores do estudo acrescentaram que crânios encontrados em Xuchang, na província de Henan, no centro da China, também exibiam algumas características neandertais, o que “pode indicar que ocorreram interações humanas entre o Ocidente e o Oriente”.
“Eu não ficaria surpreso se os indivíduos dessa espécie fizessem incursões ocasionais no território chinês.
Dito isso, o problema é que atualmente não temos esse conjunto tecnológico no restante da Ásia, o que nos deixa sem um ‘rastro de migalhas’ claro para conectar em uma possível rota de migração”, disse Delpiano.
Neandertais vs. Denisovanos
Uma explicação igualmente plausível levantada pelo estudo foi que os hominídeos que habitaram Longtan — talvez denisovanos ou outra espécie desconhecida — desenvolveram separadamente o mesmo estilo de ferramenta de pedra que os neandertais, como resposta ao ambiente igualmente hostil.
“Embora ainda não possamos confirmar a presença desse grupo na China — que foram os responsáveis pelas ferramentas do Paleolítico Médio na Europa e na Ásia Central — sabemos que sua espécie ‘irmã’, os denisovanos, estavam presentes na região”, disse ele.
“Assim, é possível atribuir essas inovações e adaptações ecológicas a eles”, acrescentou.
“A partir de uma base de conhecimento — um fundamento tecnológico comum aos neandertais europeus — grupos locais podem ter ‘reinventado’ essa tradição de fabricação de ferramentas porque ela se adequava bem às suas condições ecológicas”, disse Delpiano.
Dongju Zhang, arqueóloga e professora da Universidade de Lanzhou, na China, que não participou do estudo, afirmou que ambas as hipóteses eram plausíveis, embora especulativas. Mais evidências concretas são necessárias para entender quem fabricou as ferramentas, disse ela.
“Para mim, ainda é muito cedo para dar uma explicação sobre os criadores desse estilo em Longtan. Estou ansiosa para ver novas descobertas e evidências mais seguras, como fósseis humanos, DNA antigo ou paleoproteômica (proteínas antigas) no Leste Asiático”, disse por e-mail.
A única maneira de provar que os neandertais viveram no que hoje é a China é que paleontólogos encontrem um fóssil neandertal no país, afirmou John Shea, professor de antropologia na Stony Brook University, em Nova York.
“Ferramentas de pedra não são carteiras de identidade”, disse ele.
O novo estudo se soma a uma série de questões ainda sem resposta sobre como a história humana se desenrolou na Ásia antes da chegada em larga escala da nossa própria espécie, o Homo sapiens, à região.
“Para mim, a importância deste artigo é que ele contribui para uma lista crescente de descobertas recentes que destacam o Leste e o Sudeste Asiático como áreas-chave para pesquisas sobre as origens humanas”, disse Ben Utting, pesquisador de pós-doutorado no Departamento de Antropologia do Museu Nacional de História Natural do Smithsonian, em Washington, DC.
“Embora arqueólogos e antropólogos tenham considerado por muito tempo o Leste e o Sudeste Asiático como regiões culturalmente ‘periféricas’, essas descobertas estão ajudando a reverter essa narrativa e demonstrando que os humanos que viviam nessas regiões eram tão dinâmicos e complexos em seu comportamento quanto os que viviam em outras partes do mundo na mesma época.”
Relembre: Arqueólogos descobrem 1º túmulo de faraó em 100 anos