Já se despedindo do cargo de ministro da Justiça e Segurança Pública do governo Lula, Flávio Dino discursou em uma cerimônia de prestação de contas. Na solenidade, não foram poucos os absurdos que, sob os holofotes e entre trocas de risinhos com as demais autoridades, o futuro membro do Supremo Tribunal Federal fez desfilarem perante a plateia basbaque.
Em determinado momento, por exemplo, ele afirmou: “Estuprador tem de ser preso. Homicida tem de ser preso. Autor de crime hediondo tem de ser preso. Mas uma pessoa que eventualmente praticou um delito de trânsito, um furto, mesmo situações envolvendo crimes relativos a patrimônio de um modo geral… Então, imagino que seja por aí. Se der tempo, vou apresentar um projeto de lei no Senado sobre o assunto”.
Precisamente, Flávio Dino sinalizou querer aproveitar um tempinho ainda no Senado para a importante tarefa de facilitar a vida dos ladrões — indubitavelmente, uma necessidade de primeira ordem do povo brasileiro. Será, porém, que ele precisaria se apressar? Ainda é estritamente necessário aprovar as medidas de interesse do “consórcio” no poder através do Legislativo? Não parece ser o caso, como ilustra inusitado gracejo, verdadeira brincadeira sem graça com o Brasil, que teve lugar no mesmo evento.
Após Dino elogiar a Polícia Federal, Lula objetou que esses elogios eram perigosos: “Daqui a pouco, eles vêm com uma pauta pedindo aumento de salário”. A resposta: “Não virão porque o senhor já atendeu à pauta. Se chegarem, o senhor pode pedir uma liminar no Supremo”.
A risada estrepitosa que se sucedeu nos lembrou imediatamente de outra cena constrangedora, há alguns meses, dentro de uma sessão do próprio Supremo, a Corte máxima do Judiciário brasileiro. O ministro Alexandre de Moraes, em agosto passado, comentou a eleição para a vice-presidência do órgão, em que recebeu um voto de Fachin (eleito, mas que, por tradição, não poderia votar em si mesmo): “É que a eleição não foi no TSE”. A isso, Gilmar Mendes acrescentou: “Vai colocar esse pessoal no inquérito”. A gargalhada também foi geral.
Flávio Dino está indo para o lugar certo. Há muito, os ministros do Supremo se habituaram a declamar todo tipo de frase feita, fora de autos e sem nenhum aspecto técnico. Quando não tão sedentos por poder, demonstram-se, no mínimo, exibicionistas incorrigíveis, à caça de eventos e holofotes. Todos são coniventes com a escalada autoritária em vigor. O desejo de serem vistos como comediantes — sem talento, é evidente — é apenas a cereja do bolo.
A democracia brasileira, que eles reputam inabalável e personificada por suas ações, é mesmo “relativa”, e bastante relativa, como diria Lula. É um regime em que cidadãos morrem na cadeia sem terem seus clamores por socorro atendidos, em processo sob as mãos de um ministro que afirma, até agora sem apresentar qualquer prova, que os atos de vandalismo de 8 de janeiro tinham o plano delineado de enforcá-lo; inquéritos se perpetuam com seus artífices ocupando o papel de investigadores, juízes, acusadores e pretensas vítimas ao mesmo tempo; em que um poder republicano se atribui a prerrogativa de censurar sob o pretexto de estar defendendo a “política democrática”. Tudo isso, para os diretamente responsáveis, é motivo para piada.
Escarnece-se de mais de 200 milhões de espectadores, cotidianamente reduzidos a contemplar o deboche e a disfunção institucional. É que a disfunção é também relativa; para os gracejadores, tudo está em seus devidos lugares, bem como para significativa parcela de nossa imprensa e nossos intelectuais. Que fiquem os registros para a posteridade de que, mesmo nesta quadra histórica tragicômica, há quem ainda se interesse por falar sério.