Autores: Marcelo Victor Pires de Sousa, da Universidade Federal do Ceará (UFC); Matheus Cândia Araña, da École polytechnique, e Pedro Henrique Alvarez, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)*
Diferenciar o vivo do não vivo é uma questão científica fundamental, principalmente com o objetivo de compreender a própria origem da vida. Se por um lado a Teoria da Evolução pela Seleção Natural de Charles Darwin (1809-1882) explica a diversidade de formas de vida que vemos ao nosso redor, ela pouco informa sobre como surgem as variações que alimentam esta seleção, tampouco esclarece porquê átomos e moléculas se juntam em sistemas complexos capazes de se reproduzir para além de “processos aleatórios”.
A Física, por sua vez, pode bem explicar como átomos se unem numa dança molecular para formar estruturas complexas e suas variantes. Precisas e imutáveis, porém, as Leis da Física nada podem dizer sobre porquê estas estruturas vão assumindo funções essenciais à vida, nem dão qualquer explicação para o porquê de certas estruturas e funcionalidades ganharem preferência sobre outras.
E é para tentar cobrir esta lacuna entre Física e Biologia que pesquisadores liderados por Sara Walker, da Universidade do Estado do Arizona, EUA, e Leroy Cronin, da Universidade de Glasgow, Reino Unido, propõem o que batizaram de “Teoria da Montagem” (Assembly Theory, no original em inglês). Em artigo publicado recentemente na revista científica Nature, eles apresentam a Teoria da Montagem como uma ferramenta capaz de quantificar a complexidade de estruturas materiais, e assim ajudar a responder às perguntas fundamentais da origem e evolução da vida.
“Objetos” e índices
A Teoria da Montagem tem no seu cerne o que os pesquisadores chamam de “objetos”, conceito que definem como finito, distinto, que persiste no tempo e pode ser dividido de forma que as regras e limites para sua reconstrução a partir de blocos elementares é quantificável, isto é, pode ser medida. Definição que permite contornar a forma que objetos de interesse são tratados na Física, fundamentais e indivisíveis – como outrora foram considerados os átomos, e hoje são as partículas elementares que os compõem. Assim, sob a Teoria da Montagem, os objetos são a menor unidade de matéria que pode ser tipicamente definida pelos limites das medidas observacionais, tudo que possa ser quebrado e reconstruído a partir de suas partes, e não necessariamente elementares.
Outro pilar fundamental da Teoria da Montagem é o número de cópias idênticas que existem dos objetos, com que os pesquisadores abrem espaço para a seletividade. Isto põe em vista a noção de que quanto mais complexo é um objeto, menos provável é que exista uma cópia exata dele. Assim, quanto mais cópias idênticas existirem do objeto, mais fácil é identificar a “assinatura” de algum mecanismo baseado em informação que orientou sua construção.
Processo que se daria no que os pesquisadores apontam como o “espaço de montagem” (assembly space, novamente no original em inglês) do objeto. Nele, começamos com os blocos elementares necessários para construí-lo e, recursivamente (repetidamente), vamos combinando-os para criar estruturas cada vez mais complexas. A cada passo deste processo, novas estruturas são adicionadas ao conjunto de blocos disponíveis até que, após um determinado número de passos, chegamos ao objeto estudado.
Este número de passos recursivos necessários para formar o objeto é o seu chamado “índice de montagem” (assembly index, ainda no original em inglês). Pela Teoria da Montagem, como o objeto é finito, este número de passos é sempre finito, o que permite que essa quantidade seja computada em um tempo também finito.
Montagem e evolução
Diante disso, os autores do artigo publicado na Nature trazem uma observação interessante sobre como a teoria da montagem pode ser utilizada para quantificar a evolução, dado que esta gera objetos complexos que muitas vezes se tornam funcionais. Um bom exemplo disso é a molécula de DNA, que armazena grande quantidade de informação genética de maneira confiável e pode ser copiada. Mas uma sequência aleatória – e inútil – de letras requer tanta informação quanto o DNA para ser descrita, e até agora a ciência não foi capaz de produzir uma medida para distinguir a funcionalidade dentro da complexidade.
A teoria da montagem trata desse problema indicando que processos evolucionários necessitam de muitas etapas para a gerar objetos complexos e funcionais, e a seleção permite a criação de múltiplas cópias desses objetos. Dessa forma, argumentam os pesquisadores, a evolução poderia ser identificada na produção de muitos objetos complexos idênticos ou quase iguais.
Vemos isso na chamada “quiralidade” de moléculas orgânicas. Antes, porém, vamos entender este conceito. Em química, uma molécula é chamada “quiral” se não puder ser sobreposta em sua imagem especular (no espelho) por qualquer combinação de rotações e translações. Pense no reflexo de sua mão direita. O que você vê é como uma mão esquerda. Sua mão direita, porém, não pode ser sobreposta à esquerda. Portanto, elas são objetos “quirais”.
Moléculas criadas por processos aleatórios ou inorgânicos apresentam aproximadamente as mesmas proporções das duas quiralidades (destras e canhotas). Já processos orgânicos geralmente apresentam apenas uma quiralidade. Isso indica que analisar um único objeto de baixo índice de montagem, como uma molécula simples, não nos informa sobre sua origem ou complexidade, já que pode ter sido originado por processos orgânicos — ou simplesmente mais complexos.
Mas índice de montagem por si só não consegue detectar seleção. Por esse motivo, é necessário analisar o conjunto completo de cópias do objeto, medindo a complexidade em termos de uma hierarquia de causação advinda da seleção em diferentes níveis.
Por exemplo, se encontramos uma grande quantidade de moléculas complexas de quiralidade única, é de se esperar que elas tenham surgido de processos orgânicos, já que o conjunto como um todo tem alto índice de montagem. Dessa forma, esse método é uma ferramenta útil e precisa para medir a probabilidade de vida ser encontrada — vida essa que foi submetida à evolução darwiniana.
Calcada em rigor matemático e conceitos físicos e estatísticos, a Teoria da Montagem poderia então ser usada para medir a complexidade de objetos, além de quantificar a probabilidade deles terem surgido por processos aleatórios ou a partir da combinação de outras estruturas complexas que carregam algum tipo de “memória”. Unificando em um mesmo arcabouço objetos vivos e não vivos, a vida emerge na teoria como uma propriedade da natureza de montagem das moléculas.
*Marcelo Victor Pires de Sousa, Pesquisador associado ao IDOR e professor visitante, Universidade Federal do Ceará (UFC); Matheus Cândia Araña, Doutorando em biofísica, École polytechnique, e Pedro Henrique Alvarez, Físico, Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)
Este artigo foi republicado do The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original.
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