O Tribunal de Contas da União (TCU) investiga um suposto desvio de R$ 40 milhões do Conselho Federal de Odontologia (CFO), que teria ocorrido por meio de um esquema de pirâmide financeira. A operação total envolveu cerca de R$ 100 milhões movimentados entre os anos de 2021 e 2022.
O CFO conta atualmente com 690 mil profissionais registrados. As irregularidades financeiras teriam sido praticadas por membros da atual e de antigas diretorias, com repasses para a empresa Solstic Capital, Investimentos e Participações Ltda., controlada por Flávio Batel, falecido em novembro de 2024.
De acordo com a denúncia, já sob análise do TCU, o atual presidente da entidade, Cláudio Yukio Miyake — que ocupava o cargo de secretário-geral durante os supostos repasses — teria atuado como “operador financeiro da estrutura empresarial que recebeu os aportes, tendo sido possivelmente o principal articulador para que o CFO investisse recursos públicos na pirâmide financeira da Solstic”.
O relatório solicita o afastamento cautelar de Miyake da presidência do CFO, bem como de outros quatro diretores que ainda ocupam no Conselho Federal de Odontologia, “considerando que aprovaram as contas dos exercícios em que ocorreram os aportes à Solstic, sendo corresponsáveis pelos danos causados”.
Segundo os dados apresentados ao portal Metrópoles nesta quarta-feira, 14, a aproximação entre Miyake e Batel teria ocorrido por intermédio do empresário Carlos Alberto Kubota, sócio de Miyake no Instituto Educacional União Cultural, em São Paulo.
A Solstic Capital oferecia comissões de 5% por indicação de novos investidores, o que teria incentivado Kubota a apresentar o negócio ao então secretário-geral do CFO. Depois dos primeiros aportes, o próprio CFO teria se tornado a base de sustentação financeira da estrutura fraudulenta.
Nesse contexto, Batel e Kubota criaram a B-Life Saúde Médica Ltda., destinada ao “fornecimento de serviços de cuidado com a saúde humana, por meio de hospitais, centros médicos hospitalares e clínicas”.
A empresa também contava com participação da KHealth LLC, com sede no exterior e sob controle de Kubota. Em 2022, Batel teria se retirado da sociedade e transferido sua parte à KHealth, de acordo com o TCU.
A denúncia destaca que “A empresa B-Life Saúde Ltda. foi constituída por Carlos Kubota e Flávio Batel em 2022, em um momento em que a pirâmide financeira operada por Batel já demonstrava sinais de colapso”.
“A constituição dessa sociedade levanta sérias suspeitas de que tenha sido criada com o objetivo de facilitar a evasão de divisas e desviando para o exterior recursos públicos investidos indevidamente pelo CFO na Solstic”, pontua.
Além disso, mostra que a empresa estrangeira KHealth LLC, que compunha a estrutura societária da B-Life e tem sede no exterior, “aparece como elo estratégico na rede de lavagem de dinheiro sob apuração, indicando que a operação foi concebida para ocultar a origem dos recursos desviados”.
A documentação sugere ainda que “Batel pode ter sido pressionado ou usado como laranja, já que, mesmo tendo recebido mais de R$ 100 milhões, chegou a passar por dificuldades financeiras”, enquanto “Kubota pode ter sido o beneficiário final, esvaziando os recursos por meio de suas empresas internacionais, como a KHealth”.
O caso se tornou ainda mais complexo com a morte de Flávio Batel, em 13 de novembro de 2024, em condições até hoje não esclarecidas. O laudo oficial defendeu “causa indeterminada”, embora haja “suspeitas de suicídio por ingestão de soda cáustica, segundo relatos informais”. Pouco depois, no dia 6 de dezembro, o então presidente Juliano do Vale e o tesoureiro Luiz Evaristo Volpato renunciaram.
Vale e Volpato deveriam ter tomado posse no dia 8 de dezembro de 2024 para a continuidade do mandato, “mas renunciaram misteriosamente ao cargo antes da posse”, no dia 6 de dezembro de 2024. “Atualmente, não compõem o Plenário do CFO”, relata. “Tal saída repentina ocorreu muito próxima da data da morte de Flávio Batel, o que reforça a suspeita de que já havia pleno conhecimento da gravidade dos fatos nos bastidores da autarquia.”
Na sequência, Cláudio Miyake assumiu o comando do CFO. Em abril de 2025, a entidade divulgou uma nota assinada por toda a nova diretoria em que informava que a Solstic Capital havia devolvido R$ 8 milhões e reconhecido uma dívida de R$ 37 milhões. O documento relatava também que o caso fora encaminhado ao Ministério Público Federal e negava qualquer envolvimento da atual diretoria.
“É essencial destacar que todas as decisões administrativas e financeiras relacionadas a este investimento foram formalmente tomadas e executadas pelo então presidente Dr. Juliano do Vale e pelo tesoureiro Luiz Evaristo Volpato, responsáveis diretos pela gestão financeira da autarquia conforme suas atribuições legais e regimentais”, alega. “As análises técnicas da operação foram conduzidas pela funcionária da tesouraria, que acompanhou todo o trâmite operacional.”
A nota ainda afirma que o CFO “manifesta profundo pesar ao constatar que a instituição foi vítima de um elaborado golpe financeiro arquitetado pelo Sr. Flávio Batel e suas empresas, conforme evidenciam os fatos documentados na ação judicial e na notícia-crime apresentadas aos órgãos competentes”, diz. “Conforme apurado, o esquema envolveu a apresentação de falsas credenciais, promessas fraudulentas e uma complexa engenharia financeira com o único objetivo de apropriar-se indevidamente dos recursos da autarquia.”
Ainda segundo a denúncia, a Solstic Capital era apenas uma divisão da Solstic Advisors, empresa de Batel que não contava com autorização da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) ou do Banco Central (BC) para atuar no mercado de investimentos. A atividade original da empresa seria a fabricação de móveis.
“Era uma holding criada por Flávio Batel com o objetivo de montar móveis, mais especificamente cadeiras de escritório”, denuncia. “Segundo informações obtidas, havia um contrato dessa holding com o banco Santander, pelo qual Batel importava componentes da China, montava e entregava as cadeiras ao banco, com lucro estimado em 20%.”
A atual diretoria do CFO confirma que a empresa não tinha autorização legal para receber os aportes e justifica a escolha da aplicação por causa das dificuldades enfrentadas durante a pandemia.
“Relatórios da auditoria externa, solicitada pela atual gestão em 2025, confirmam que a Solstic Capital não era habilitada pelo BC ou pela CVM para custódia de depósitos de investidores ou para oferecer remuneração, e que o contrato estava à margem das normas do mercado financeiro”, pontua. “Os extratos mensais emitidos pela própria Solstic, sem correspondência em instituições financeiras oficiais, constituem fortes indícios de estelionato financeiro”.
Além de solicitar o afastamento dos envolvidos, a denúncia pede que seja instaurado inquérito para apurar os possíveis crimes de peculato, estelionato, advocacia administrativa, tráfico de influência, formação de organização criminosa, lavagem de dinheiro, evasão de divisas, prevaricação e desobediência a ordem judicial.
CFO se manifesta sobre esquema de pirâmide
Em resposta às investigações em curso, a atual diretoria da autarquia divulgou nota oficial com esclarecimentos. O CFO afirma que a operação financeira ocorreu durante gestões anteriores, encerradas em dezembro de 2024, e que os responsáveis à época podem ter sido vítimas de um golpe.
Segundo o comunicado, a atual administração só tomou conhecimento completo da situação em janeiro de 2025, depois de assumir o mandato no mês anterior. Desde então, instaurou auditorias internas e externas, protocolou ação de cobrança no Tribunal Regional Federal da 1ª Região, apresentou notícia-crime ao Ministério Público Federal e passou a colaborar com as autoridades na elucidação dos fatos.
O CFO também esclarece que, à época dos aportes à Solstic, Miyake exercia apenas a função de secretário-geral, “cuja atribuição não inclui qualquer poder de decisão sobre aplicações financeiras, prestações de contas ou execuções orçamentárias”. Reitera, portanto, que Miyake não teria qualquer envolvimento direto com os atos sob investigação.
A autarquia apresentou uma cronologia detalhada dos acontecimentos e contextualizou a motivação inicial da operação: a busca, durante a pandemia de Covid-19, por soluções que aliviassem as dificuldades financeiras enfrentadas por profissionais da odontologia.

Foi nesse cenário, diz a nota, que representantes da gestão anterior, como o então presidente e o tesoureiro, estabeleceram contato com Flávio Batel, que se apresentou como representante do banco BTG Pactual, e assinaram o contrato com a Solstic Capital. O objetivo declarado era o repasse de recursos para uma conta do CFO na instituição bancária — o que, segundo o conselho, nunca ocorreu.
A atual diretoria sustenta que, diante do inadimplemento das obrigações por parte da Solstic, a entidade cobrou a devolução dos valores e conseguiu o retorno de pouco mais de R$ 8,6 milhões. Em fevereiro de 2023, a empresa reconheceu uma dívida de R$ 37,1 milhões com o CFO, que notificou extrajudicialmente a companhia e seus representantes.
Relatórios de auditoria externa confirmaram, segundo o conselho, que a Solstic Capital não possuía autorização da CVM ou do BC para atuar no mercado de investimentos, o que sugere “fortes indícios de estelionato financeiro”.
Em nota, o CFO ainda manifesta “profundo pesar ao constatar que a instituição foi vítima de um elaborado golpe financeiro arquitetado pelo Sr. Flávio Batel e suas empresas, conforme evidenciam os fatos documentados na ação judicial e na notícia-crime apresentadas aos órgãos competentes”.
Por fim, o conselho reforça que seus serviços à categoria não foram interrompidos e que novos mecanismos de controle foram implementados para prevenir falhas semelhantes. Também repudia o uso político do caso e acusa “pessoas mal-intencionadas” de explorarem o episódio com “narrativas distorcidas que não correspondem aos fatos documentados”.