Existe uma estupenda obra de Anton Tchekhov praticamente esquecida pelos grandes leitores do russo — ou, pelo menos, não mencionada —, que traz uma das lições mais profundas e urgentes que podem existir para o homem moderno. E o melhor, tudo isso sem nenhum pedantismo religioso, moral ou político. Estou falando do curto romance chamado O Duelo (Amarilys). Nele o autor narra como um homem, Ivan Láevski, preso a ideais abstratos de grandeza e vícios cotidianos, tornou sua vida um remorso constante, sustentando-se em muletas depressivas — porém confortáveis — de rapinagem e reclamações.
O livro teve sua primeira edição em 1891, e nela acompanhamos a história de Ivan Láevski, um jovem aristocrata que vive em uma cidade costeira do Cáucaso ao lado de Nádia Fiódorovna, uma mulher casada que fugiu com o protagonista a fim de levar uma vida independente, longe de seu marido entediante. No entanto, Láevski está constantemente insatisfeito com sua situação na pacata cidade costeira onde vive, e por isso deseja recomeçar sua vida, sem Fiódorovna, em São Petersburgo, custe o que custar. Todavia, ao mesmo tempo, ele teme enfrentar as consequências de suas escolhas; e, para fugir de tais consequências, recorre sempre a mentiras, ao coitadismo e aos vícios. Ao querer fugir para Petersburgo, mostra-nos Tchekhov, ele está tentando fugir, antes de tudo e todos, dele próprio.
Seu modo de vida o coloca em choque com Von Koren, um zoólogo rígido e pragmático que defende o darwinismo social como modo de restauração civilizacional, isso é, defende a sobrevivência dos mais fortes e despreza aqueles que considera fracos e irresponsáveis. Sua ideologia leva-o a defender abertamente a morte dos menos aptos, dos doentes mentais e dos devassos. O embate entre os dois cresce ao longo da narrativa, culminando em um duelo que testará não apenas a coragem de ambos, mas também seus princípios e visões de mundo.
Tchekhov sempre me pareceu o menos psicologicamente profundo dos autores russos contemporâneos a ele, tal como Dostoiévski e Tolstói. Todavia, em O Duelo, ele traz à tona um dos mais comuns e ignorados embates do homem, que não são aqueles aos quais Hollywood nos acostumou, aquelas tramas que trazem problemas globais que dependem de um ato de coragem de ser um iluminado, ou quiçá, dramas sentimentalmente apelativos como sequestros de princesas, extinção da humanidade e invasões alienígenas. Tchekhov foi profundo o suficiente para expor as fraquezas mais banais e mortais à alma do homem; e isso é tão raro quanto paradoxal, pois precisa de uma sensibilidade imediata temperada a um mergulho profundo nas carências e vergonhas humanas. O que mais afeta o homem comum são suas tibiezas cotidianas e suas guerras ordinárias, geralmente a derrota final na vida de um homem comum é feita, antes de mais nada, de uma escalada de fracassos efêmeros.
Ou seja, aquela ideia depressiva que alimentamos com razões reais e inventadas; a pequena contenda que transformamos em conflito de sangue; o ego ferido que nutrimos até se tornar sede de vingança; a corriqueira frustração ante um insucesso que vertemos em vitimismo existencial; uma quebra de expectativa que transformamos em derrotismo moral; um vício qualquer que normalizamos em nossas vidas a fim de que possamos gozar sem remorso. Aqui está o foco de Tchekhov: ele nos mostra por meio de Láevski e Von Koren como, não raro, os homens deliberadamente matam seus jardins a fim de plantarem ervas daninhas e demais pragas, justificando tal empreitada absurda como fruto de uma filosofia nova e iluminada, ou um estilo de vida particular e virtuoso.
E assim, os personagens acima só chegam às vias de um duelo devido às decepções que ambos nutrem, acima de tudo, com eles próprios. Koren é um zoólogo frustrado, pois sua matéria de pesquisa não avança e está fadada ao fracasso na região onde está; Láevski foi um promissor estudante e futuro acadêmico que, devido ao vício por mulheres comprometidas — fruto de uma relação ruim com a mãe — e seu idealismo filosófico exacerbado, levou-o a projetar nos outros e no ambiente as causas de suas fraquezas morais.
Resolvendo então descontar na violência as frustrações mutuas e individuais, os homens marcam um duelo que acaba de forma inesperada, fazendo com que ambos entendam que os realizadores de seus próprios fracassos são eles mesmos, por meio de suas escolhas erradas, vícios e defeitos de caráter. Um homicídio de um inimigo não enterraria a suas lepras morais, apenas acrescentaria um crime às suas vergonhas. No final, Anton Tchekhov nos brinda com uma maravilhosa lição de vida, talvez uma das maiores possíveis: só há redenção por meio da autoconsciência de nossas fraquezas e limitações, pela busca sincera em emendar-se mediante o perdão, e pela resignação moral e pela busca pela liberdade interior.
Em 176 páginas, na ótima edição da Amarilys, com tradução de Klara Gourianóva, Tchekhov nos dá um libelo à restauração moral do homem ante seus piores e mais comuns inimigos: o vitimismo, os vícios banais e a projeção culposa de suas fraquezas em terceiros. Um livro poderoso para ser dado a jovens como antídoto, pois, se existem males grandes em nossa civilização, é certo que quase todos eles têm nesses três males acima nominados as suas estacas de sustentação. O recado de Tchekhov é simples e poderoso: talvez o maior mal que você enxerga no mundo tenha a raiz bem fincada dentro de você mesmo, e querer consertar a sociedade sem reparar a si próprio não passa de uma patologia muito comum nos dias atuais: o heroísmo hipócrita.