sábado, novembro 23, 2024
InícioViagem & GastronomiaSusana Balbo, rainha do Torrontés, foca em “desafiar limites“ na vitivinicultura

Susana Balbo, rainha do Torrontés, foca em “desafiar limites“ na vitivinicultura

É impossível falarmos sobre o vinho argentino e não citarmos Susana Balbo. Detentora de muitos títulos, ela é mais conhecida como a primeira enóloga da Argentina, assim como pioneira na exportação dos rótulos do país e uma das embaixadoras da vitivinicultura argentina a nível mundial.

Para além disso, ela é, assim como eu, uma mãe, empreendedora e fomentadora da inclusão da mulher nos mais diversos ramos da sociedade e do mercado de trabalho. Formada em 1981, Susana já passou mais de 40 anos desafiando o mundo dos vinhos, seja enfrentando um setor dominado por homens ou colocando a uva branca Torrontés como protagonista de uma região onde o vinho tinto reina.

Mas se engana quem pensa que ela para por aí. Há muito mais pela frente, como ela mesma ressalta no bate-papo que tivemos na última semana. “Vou desafiar os limites para ver até onde posso chegar com o Torrontés”, me disse.

De fato, não há muitos limites para quem começou a carreira em Cafayate e colocou o Torrontés no mapa mundial a ponto de ser chamada de “Rainha do Torrontés”. Ou ainda para quem trabalhou ao lado de Nicolás Catena na Catena Zapata, fundou a própria vinícola em 1999 em Mendoza e que agora aposta na hospitalidade com seu hotel boutique, o Susana Balbo Unique Stays, onde somos recebidos como convidados em sua casa.

“Hoje vejo meus filhos sendo felizes fazendo o que eles gostam e entendo que pude deixar um legado”, resume a enóloga.

Confira a entrevista na íntegra com Susana Balbo, em que a profissional relembra sua trajetória, explica seus processos e aponta para o futuro:

Daniela Filomeno: Mais do que a primeira enóloga da Argentina, você me deu uma verdadeira aula de química que é muito interessante para explicar sobre terroir e vinhos. Por que isso é importante?

Susana Balbo: Tenho absoluta convicção de que fazer um vinho é uma arte. Mas essa arte deve estar respaldada pela ciência e pelo conhecimento. Isso não começa a ser estudado quando se entra na universidade, pois nunca termina: estamos sempre estudando.

Há muita pesquisa no mundo que nos fornece ferramentas para sermos assertivos no que fazemos e para termos consistência na qualidade que oferecemos. Por outro lado, algo muito importante é que quanto mais sabemos, menos intervimos no processo natural da produção de um vinho, porque assim temos certeza de que estamos trabalhando bem.

Podemos medir o que estamos fazendo, medir os resultados. Podemos intervir se houver alguma falta, mas tentamos não fazer isso para que tenhamos a melhor expressão da terra e da uva com a qual trabalhamos duro para obter.

D: Você carrega uma série de títulos muito interessantes, como a primeira mulher enóloga da Argentina e a Rainha do Torrontés. Em um mundo tão masculino e onde o vinho tinto predomina, você não somente transformou esta cepa em protagonista, mas também trouxe o vinho branco para uma região onde predomina o vinho tinto.

SB: Faz 42 anos que trabalho com a cepa Torrontés, que era considerada uma cepa indígena. Por isso havia uma percepção menos prestigiosa de sua qualidade e potencial. Mas em 2003, uma engenheira agrônoma argentina, Cecília Agüero, foi fazer um PhD na Universidade da Califórnia, em Davis, nos Estados Unidos, e investigou o DNA do Torrontés.

Ela determinou que o Torrontés é um cruzamento do Moscato de Alexandria, a uva branca mais antiga conhecida, com a Listán Prieto, variedade originalmente das Ilhas Canárias. Ambas são vitiviníferas, não são variedades indígenas, e têm a capacidade de produzir vinhos de alta qualidade. Assim nasceu o Torrontés, há aproximadamente 650 anos, de acordo com o que Cecília pôde concluir.

Eu já estava trabalhando com essa variedade no início dos anos 1980 e via que tinha um enorme potencial para produzir vinhos de alta qualidade quando trabalhada adequadamente. É uma variedade um pouco difícil, pois têm muitas pectinas, o que dá a consistência da gelatina, o que dificulta a obtenção do líquido. Então temos que aplicar um pouco mais de criatividade na forma que trabalhamos para obter o suco e fermentá-lo fresco.

E essa foi a grande inovação que realizei há 40 anos, usando uma enzima de maçã na uva. Hoje existem enzimas especializadas, a ciência nos proporcionou muitas melhorias nesse processo. Mas naquela época, foi uma ideia espontânea de unir minhas duas carreiras: a enologia e a viticultura com minha experiência na indústria de frutas e hortaliças. Então, foi assim que consegui uma mudança drástica no estilo de Torrontés. Uma mudança que segue até hoje.

Eu vou sempre desafiar os limites e por isso sigo “liderando e mudando”. Primeiro comecei com os limites da qualidade e com os sucos frescos, depois segui com os limites de mudar o Torrontés do microclima de Cafayate, que era considerada a melhor região da Argentina, para um clima muito mais frio e diferente, que é a zona de Altamira, em Mendoza, que resultou em um Torrontés de características distintas.

Quando você prova o Torrontés dessa área, você não diz de imediato que é um Torrontés. Pode pensar que é um Condrieu da França, um Riesling da Alsácia, mas nunca um Torrontés.

O outro desafio foi levá-lo a Gualtallary, no Vale de Uco, a 1.350 metros de altitude, e entregar um vinho com uma delicadeza, uma mineralidade e um aroma que o tornam em algo extraordinário. Agora, o último desafio é fazer, já no próximo ano, a primeira colheita em San Pablo, a 1.600 metros de altitude.

Vou desafiar os limites para ver até onde posso chegar com essa variedade

Susana Balbo

Daniela Filomeno e Susana Balbo
Daniela Filomeno e Susana Balbo em Mendoza / CNN Viagem & Gastronomia

D: Estive em Mendoza e notei que todos estão de olho em plantações de altitude, inclusive para Malbec. Temos regiões como Luján de Cuyo e Maipo, por exemplo, mas o foco agora é principalmente nas regiões de Vale de Uco, San Pablo, Gualtallary. Por que essa mudança?

SB: A mudança em Mendoza foi em busca de um clima um pouco mais extremo e para solos diferentes. Hoje, a mudança para o Vale de Uco se dá pela busca por solos calcários. É um paradoxo que estamos  buscando para encontrar a perfeição nos vinhos.

O que proporciona tudo isso é a composição do solo, combinada com uma luz solar muito pura e um clima continental e seco. Utilizamos um pouco de irrigação, pois, caso contrário, não conseguiríamos cultivar as uvas. Esse solo calcário que buscamos são afloramentos do Terciário na montanha na Cordilheira dos Andes, que é do Quaternário, com milhões de anos de diferença. Quando ocorre um afloramento do Terciário, os solos têm muito mais cálcio, mas, além disso, são solos que preservam naturalmente a acidez da uva.

Há uma grande amplitude térmica devido à altitude, com uma temperatura média suave de cerca de 23ºC, mas com picos de temperaturas baixas e altas. Durante o dia, pode chegar a mais de 30°C, enquanto à noite cai drasticamente, podendo chegar a 16°C. Isso é fabuloso para obter tintos com taninos de grão fino, adequados para o envelhecimento por muitos anos, e também para vinhos brancos com mineralidade e características aromáticas típicas de vinhos de regiões frias, com solos semelhantes aos da Borgonha.

Estamos falando de uma combinação ideal que se encontra em uma zona muito específica, como Gualtallary, ou a zona de San Pablo e também Tunuyán, localizados na borda da Cordilheira dos Andes, onde estamos testando os limites.

Vinícola de Susana Balbo em Agrelo, na cidade de Luján de Cuyo
Vinícola de Susana Balbo em Agrelo, na cidade de Luján de Cuyo, em Mendoza / Divulgação

D: Como você explicaria o Torrontés?

SB: Do ponto de vista químico há três componentes fundamentais que fazem o aroma do Torrontés. O linalol, presente nos jasmins, um aroma em que aparecem os cítricos; o terpeno, aroma que é do moscato, que também aparece um pouco no maracujá; e o geraniol, típico do gerânio, da rosa branca.

Esses três aromas são comuns no Torrontés, no Riesling, no Sauvignon Blanc e no Sémillon. Ou seja, muitas variedades os têm, mas em distintas proporções. O Torrontés de Salta é mais rico em terpeno, já em Mendoza é mais rico em linalol.

Quando tomamos um Torrontés de uma zona mais quente e de solo mais arenoso, destaca-se uma maior quantidade de aromas voltados ao moscato, e quando tomamos um Torrontés de uma zona mais fria, de uma zona de solo mais calcário, temos um aroma mais voltado a laranja e pêssego branco.

Então essa é a maravilha da influência do terroir, em que a química da uva é transformada pelo solo e pela temperatura.

D: Terroir é feito de elementos como terra, clima e também pelo trabalho do homem. O que isso significa dentro da vinícola Susana Balbo?

SB: A ciência que aderimos de forma permanente nos permite intervir o menos possível para obter o melhor do terroir. Então a influência do ser humano nisso está em manejar adequadamente.

O que nós buscamos é a mínima intervenção no vinhedo, o mantendo o mais natural possível, e lhe dando água de forma justa para que a videira cresça e amadureça a uva. A videira é naturalmente uma mãe, que cuida dos seus filhos, que é a uva. E o futuro dos seus filhos está na semente. Se elas crescem enlouquecidamente, a semente nunca amadurece, então temos que manejar a irrigação e os tratamentos no vinhedo de maneira que cresçam da forma mais natural possível, obtendo a melhor qualidade.

Para isso, às vezes, é necessário remover partes fracas ou que não têm força para manter cachos e amadurecê-los. É preciso ficar atento também à remoção de folhas, mas é preciso não se entusiasmar com essa remoção porque a luz a 1.300 metros é forte e pode queimar as uvas. Se elas são queimadas, aparece nas uvas tintas uma cor roxa, uma cor característica da berinjela, e que dá um sabor tremendamente amargo no vinho, com taninos muito secos.

Já a água, que vem do degelo e é muito pura, é usada em pequenas lâminas que vamos dando para que a videira se mantenha vigorosa e com equilíbrio, para que não tenha enfermidades e carências. Se há algum tipo de carência, que se trate de suprir com algum recurso natural, como ervas que melhorem a qualidade do solo ou algum tipo de recurso que venha de algum animal, como o uso de guano, para evitar usos químicos.

Essa é a parte do ser humano, mas que é respaldada de um conhecimento profundo e de observação, porque o mais importante é entender o ambiente. Lembro-me que quando vivia em Cafayate havia um trabalhador do campo que me falava com antecedência os fenômenos climáticos que iriam acontecer em um ou dois dias. Por exemplo, há uma montanha em Cafayate que se chama Zorrito, e quando havia uma nuvem no topo dela, ele me dizia: amanhã o dia será frio. Ele conhecia determinados tipos de pássaros, e se eles apareciam, ele me dizia: Dona, vamos ter mais chuva. Tudo era observação.

Vamos substituindo isso com estações meteorológicas e nos embasamos com estatísticas. A influência dos seres humanos tem que estar respaldada por um conhecimento que lhe permita ser, no mínimo, indispensável.

O que realmente devemos pressionar dessa uva é a combinação do solo, a posição que elegemos, a forma de condução e outras decisões tomadas em função do conhecimento do lugar. Mas estamos sempre explorando e aprendendo, porque a Cordilheira é muito ampla e muito grande. Vamos descobrindo cada vez novos lugares e, cada vez mais, acredito que isso seja infinito.

Susana Balbo e seus filhos Ana e José
Susana Balbo e seus filhos Ana e José, que trabalham na vinícola ao lado da mãe / Divulgação

D: Você ultrapassou várias barreiras e ainda tem seus filhos trabalhando ao seu lado em um hotel boutique e na vinícola. Como você enxerga o marca Susana Balbo daqui um tempo?

SB: Eu vejo meus netos trabalhando na vinícola, no hotel, nos restaurantes e na propriedade nova que estamos desenvolvendo. Hoje, vejo meus filhos sendo felizes fazendo o que gostam, e entendo que pude deixar um legado.

Venho de uma família muito humilde, meus pais têm apenas educação primária, e sou a única graduada na universidade na família.

Poder construir o que construí e deixar esse legado aos meus filhos e aos meus netos me parece que é um presente de Deus

Susana Balbo

D: O Malbec é a sua estrela dos vinhos tintos. Conte-me um pouco mais da sua produção e da linha especial “Nosotros Nómade”.

SB: Temos cinco parcelas de Malbec. Eu falava que o vinhedo de Agrelo era o melhor que tínhamos, mas começaram a aparecer outros, como quando compramos o vinhedo de Gualtallary e de Altamira, por exemplo. Comecei a me dar conta de que alguns eram mais ricos que os de Agrelo, não queria mentir.

Então decidi mudar o nome da linha Nosotros, que antes era Nosotros Single Vineyard, para Nosotros Nómade, isso porque vamos mudando de parcela a cada colheita. Temos cinco vinhedos: em Chacayes, em Altamira, Gualtallary, em Agrelo e em Vista Flores. Nos cinco trabalhamos de forma igual, com a mesma quantidade de água, por exemplo, de maneira que a influência do homem é a mesma. Então o que queremos como resultado é a expressão do lugar.

Estes vinhos se elaboram separados, mas da mesma forma, com leveduras nativas. São fermentados em tonéis de três a quatro mil litros. Assim unimos os componentes de cada lote, testamos e nos perguntamos: qual dos cinco é o melhor? Quando escolhido, colocamos a bebida em barris de carvalho francês novos, onde fica por dois anos.

Os outros vinhos que não entraram na nossa classificação, mas que ainda são de altíssima qualidade, são destinados a uma linha que chamamos de Susana Balbo Signature Limited Edition. Então, no final, temos quatro vinhos fantásticos que entram para esta linha.

A linha Nosotros possui dois novos rótulos, chamados Corcel e Sofita, que foram feitos em homenagem a duas pessoas que me ajudaram em momentos muito difíceis na minha vida. Esses vinhos também vêm de vinhedos que não foram incluídos na classificação Nómade.

Via CNN

MAIS DO AUTOR

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui