Na semana passada, o Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade de leis municipais que proibiam o uso da chamada “linguagem neutra” nas escolas públicas. A decisão, relatada pelo ministro André Mendonça, foi tomada com base em um argumento formal: os municípios não teriam competência para legislar sobre o tema.
Mas essa decisão, além de tecnicamente discutível, ignora completamente o mérito da questão e revela uma omissão preocupante por parte da Corte — especialmente do relator, escolhido sob a promessa de representar valores conservadores.
Em primeiro lugar, vale dizer o óbvio: não se trata aqui de inconstitucionalidade material. Nenhuma norma da Constituição legitima o uso da linguagem neutra como política pública. Ao contrário, a Constituição determina que a educação deve ser pautada pelo pleno desenvolvimento da pessoa, pela cidadania e pela preparação para o trabalho (art. 205) e que o ensino será ministrado com base nas diretrizes fixadas em lei federal (art. 210).
É justamente esse papel que cumpre a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB – Lei 9.394/1996). A LDB exige, em seu art. 26, que os currículos escolares tenham uma base nacional comum e, em seu art. 32, que os alunos dominem a norma culta da língua portuguesa. A Base Nacional Comum Curricular (BNCC), homologada pelo Ministério da Educação, reforça esse princípio ao estabelecer o domínio da norma culta como ferramenta essencial de inclusão e cidadania.
A fragilidade do argumento do STF
Essas normas materializam preceitos constitucionais e nunca foram objeto de contestação no Supremo, o que reforça sua legitimidade jurídica. Em contrapartida, a linguagem neutra não consta na gramática normativa, não é prevista na BNCC e pode criar barreiras cognitivas graves, especialmente para crianças em processo de alfabetização e pessoas com deficiência. A imposição desse modelo, além de ferir o princípio da impessoalidade administrativa, representa um desvio ideológico do dever estatal de garantir educação de qualidade.
Mesmo no plano formal, o argumento do STF é frágil. A Constituição, em seu art. 30, II, permite que os municípios suplementem a legislação federal e estadual no que couber. Se a norma federal já estabelece a obrigatoriedade da norma culta, é razoável que o município reforce essa exigência em sua rede de ensino. Isso não é inovar, é atuar dentro do espaço de suplementação previsto constitucionalmente. A atuação municipal, nesse caso, não usurpa competência da União, mas a exerce legitimamente.
Por fim, chama atenção a postura do ministro André Mendonça, relator do caso. Conhecido como “terrivelmente evangélico”, Mendonça simplesmente ignorou todo o debate jurídico sobre a LDB, a BNCC e o papel do município como executor da política educacional. Sua atuação revela fragilidade técnica e um fracasso político, pois sua indicação ocorreu em um governo conservador, sob a promessa de que representaria os valores desse segmento ideológico no STF. A terrível omissão na relatoria deste caso deixa claro: essa promessa não foi cumprida.
Bernardo Santoro é cientista político e advogado, mestre e doutorando em Direito (Uerj). Sócio do escritório SMBM Advogados (smbmlaw.com.br) e conselheiro do Instituto Liberal