Eu não sou catastrofista, não acho que a tecnologia veio para dizimar a humanidade, ainda que admita que muitos desenvolvimentos da inteligência artificial me assustam e que o livro de ficção científica Eu, Robô (Aleph), de Isaac Asimov, é aterradoramente real de muitas maneiras. Fato é que não há como negar que a tecnologia trouxe benefícios inumeráveis à humanidade, desde a biomedicina ao Pix. No entanto, é observável também que, quando o papo é educação e interatividade real entre pessoas, sofremos um revés bizarro no pós-revolução tecnológica. Segundo o francês Michel Desmurget, em seu ótimo A Fábrica de Cretinos Digitais (Vestígio), as telas estão literalmente idiotificando as novas gerações, ao ponto do paradigma de James Flynn — as gerações seguintes tendem a ter um QI maior que as anteriores — estar se revertendo. É o que observou Desmerguet em países como França, Finlândia, Dinamarca, Holanda e Noruega. Sim, nós somos da era na qual pessoas casam-se com bonecos — e nem estou falando exatamente da geração Z e Y agora —, sem contar que nossos adolescentes sofrem cada dia mais com ansiedade e depressão advindas de um estilo de vida cada vez mais conectado e afastado do mundo real.
Admita, você conhece uma criança ou um adolescente que passa, no mínimo, entre 8 a 12 horas por dia, quase ininterruptamente conectado, seja em games ou redes sociais. Você mesmo, diariamente, perde “boas” horas no seu smartphone, assim como eu. Não tem como dar certo num longo prazo, e, agora, a medicina psicológica, pedagogos e o bom e velho senso comum começam a recolher as consequências disso tudo. Esse é o tema do surpreendente — e não uso esse adjetivo para qualquer coisa — livro de Jonathan Haidt, A Geração Ansiosa (Companhia das Letras).
Já conheço o autor desde quando o editei em A Hipótese da Felicidade (LVM) em 2021, e depois, quando li seu outro bom livro, A Mente Moralista (Alta Cult). Especificamente em A Geração Ansiosa, Haidt aborda três fatores que contribuem para essa crescente ansiedade.
A revolução tecnológica e o uso das redes sociais: o crescimento das redes sociais e o uso excessivo de smartphones são apresentados como um dos principais culpados pela crise de saúde mental desta geração. Haidt, aliado a Jean Twenge, argumenta que a exposição constante a comparações sociais, bullying on-line e a pressão para manter uma “imagem perfeita” nas redes têm efeitos profundos sobre a autoestima e a saúde mental. Os indivíduos afastam-se da realidade, vivendo em uma nuvem de perfeições inexistentes, exatamente como numa espécie de episódio de Black Mirror ininterrupto; além do empoderamento que o mundo virtual dá a machões e militantes extremistas, há o caráter da imbecilização por likes, os indivíduos se entregam a uma estética de arco-íris, um mundo insano onde todos sabem que tudo não passa de um faz de conta virtual, mas que, mesmo em meio a crises profundas, ostentam uma perfeição ou uma firmeza de virtudes heroicas mentirosas para seus seguidores, em busca de adulações.
Mudanças na cultura e o abandono da educação para o calejamento: a geração atual, de acordo com o autor, cresceu em um ambiente onde a cultura, a política e o seio familiar passaram a valorizar a segurança e a proteção acima de tudo, o que resultou em uma tendência de superproteção dos jovens, principalmente por parte dos pais e, mais recentemente, de instituições educacionais. Isso teria levado a um aumento da ansiedade, já que os jovens não são desafiados a lidar com frustrações ou adversidades como as gerações anteriores. Os adolescentes são blindados de fracassos desde a mais tenra idade, crescem habituados a terem seus problemas resolvidos por terceiros, lidando o mínimo possível com as consequências de seus próprios erros, e com os inevitáveis defeitos de morais de todos os homens, inclusive daqueles que eles amam e confiam. Tudo isso instalou como pressuposto mental nos jovens da geração Z a ideia de que problemas são sempre inerentemente injustiças contra alguma casta da qual ele faz parte, ou um ataque pessoal a ele, levando-o a buscar no vitimismo, no “outro”, ou no cosmos, a desculpa para suas falhas e fraquezas, ao invés de encontrar soluções, criar resiliência e calejamento moral para enfrentar uma realidade que, não poucas vezes, será hostil.
O efeito da polarização social e política: Haidt também aponta que a crescente polarização política e social, alimentada por redes sociais e pela mídia, tem criado um ambiente de desconforto psicológico para muitos jovens, que se veem cada vez mais empurrados a tomarem parte em lutas ideológicas, abandonando assim uma tentativa de diálogo saudável. Os jovens, muito pelas consequências das problemáticas exploradas nos dois parágrafos acima, criam uma caricatura de si próprios, inflacionando a importância social que suas opiniões e ativismos têm na realidade. Inflados por pregações políticas constantes, eles abraçam causas com uma ferocidade incrível, e isso se dá por alguns fatores, mas o principal é o “efeito manada”, eles se sentem importantes e poderosos dentro de certos grupos, gritando bordões e apoiando ideias que encontram ressonância e apoio de seus parceiros. Isso gera uma ilusão de que suas ideias são fatores de mudança social, que são, de alguma maneira, únicas, quando, no final, tais pregações apenas geram ansiedades e frustrações, pois como você bem sabe, se me lê há algum tempo: a ideologia é sempre uma falsificação ou fração da realidade como ela é, uma fuga da realidade para um ambiente de conforto do ego, não obstante, não raro, sob o custo da saúde mental.
O livro propõe soluções para se lidar com esse cenário, sugerindo que os jovens precisam de oportunidades para desenvolverem resiliência emocional e habilidades para lidarem com desafios. Além disso, Haidt enfatiza a importância de um equilíbrio saudável no uso das tecnologias e a necessidade de uma abordagem mais pragmática no sistema educacional, que valorize a liberdade e a autonomia dos estudantes. Isso é, contudo, o óbvio ululante, e aqui vem minha leve discordância do autor. Precisamos criar tomadas de posições drásticas pelos pais, as limitações e vigilâncias das tecnologias chega a ser algo evidente demais para ser dito aqui, o que vislumbro antes é a proibição tácita de utilização de certas redes a crianças e adolescentes. Uma criança não precisa, e se me permitem, não devia ter um perfil no Instagram e muito menos do X; adolescentes não podem dormir com seus celulares ao lado da cama e nem deveriam ter acesso perpétuo a seus smartphones quando bem entenderem. Vocês acham isso drástico demais (?), ok, então olhem para si próprios, vocês, adultos, maduros e bem feitos, realmente conseguem se dominar ante a internet e suas delícias viciantes? Pois é. Então, por que esperam isso de seres que estão ainda em processo de formação moral, psicológica e, até mesmo, fisiológica? Não é preciso ser reacionário para notar uma estupidificação de nossa juventude pelo contato contínuo com mundo virtual; hoje isso não é mais papo de avô carola, é visível em todos os cantos, por todos os tipos de pessoas mais ou menos equilibradas. Por fim, como editor de livros, eu me achego a uma tese, a tese de outro livro de Michel Desmurget, Faça-os Ler!: Para Não Criar Cretinos Digitais (Vestígio), a solução, pelo menos parcial, acredito que seja criar uma vida de leitura e afastamento das redes, o que naturalmente gerará concentração, disciplina e níveis menores de ansiedade cotidiana; e, dado que a leitura não demanda pressão constante por perfeição social e aceitação grupal, esse remédio já é um maravilhoso começo. E, se me permitem apenas mais uma opinião, levem sua família para as montanhas, tentem uma vida mais simples e desconectada, nem que seja somente aos finais de semana, criem hábitos orgânicos que não dependam diretamente de internet, como a leitura, o bate-papo e jogos que não demandem conexão com internet. Ainda é gostoso sentar ao redor de uma fogueira, contar piadas e casos de assombração ou lembranças familiares, jogar futebol com as crianças e fazer um jantar a luz de velas com o amor. Sabemos que segunda-feira, muito provavelmente, você precisará voltar à normalidade tecnológica, mas dá, sim, para viver sem o Google, a Meta e o X. Nem tudo precisa de uma selfie para se eternizar, nem toda felicidade necessita de likes alheios para ser mais feliz. Talvez tenhamos nos esquecido disso.