Moradores do deserto da Idade do Bronze, desenterrados de tumbas no que hoje é o noroeste da China, foram enterrados com queijo espalhado sobre suas cabeças e pescoços — talvez como um lanche embalado para a vida após a morte.
Uma década após a descoberta dos laticínios em restos surpreendentemente intactos mumificados pelas condições áridas do deserto de Taklamakan, cientistas extraíram e sequenciaram o DNA do queijo de 3.600 anos, o mais antigo registrado na arqueologia.
A análise revelou como o povo Xiaohe produzia queijo, mostrando como os humanos utilizaram micróbios para aprimorar seus alimentos e como esses seres vivos podem ser usados para rastrear influências culturais ao longo das eras.
As descobertas, publicadas na última quarta-feira (25) na revista Cell, abrem uma “nova fronteira nos estudos de DNA antigo”, com esse “tipo de pesquisa impensável até mesmo há uma década”, disse Christina Warinner, Professora Associada de Ciências Sociais e Antropologia na Universidade de Harvard. Warinner não participou da pesquisa.
“Hoje, alimentos fermentados são predominantemente produzidos utilizando apenas um punhado de cepas comerciais de bactérias e leveduras, na maioria cultivadas em laboratório”, disse ela.
“Pouco se sabe sobre a outrora diversificada gama de microrganismos tradicionais que as pessoas usavam no passado para produzir os alimentos mais icônicos de hoje — que vão desde pão a queijo, e de cerveja a vinho.”
Uma equipe liderada pela paleogeneticista chinesa Qiaomei Fu identificou DNA de cabra e gado em amostras do queijo. Os pesquisadores também conseguiram sequenciar o DNA dos microrganismos contidos no queijo, confirmando que se tratava de kefir, um tipo de queijo que ainda é amplamente produzido e consumido atualmente. Fu é diretora do laboratório de DNA antigo no Instituto de Paleontologia de Vertebrados e Paleoantropologia em Pequim.
Como um enigmático povo do deserto fazia kefir
Centenas de indivíduos mumificados foram encontrados na década de 1990 no que é conhecido como o cemitério de Xiaohe, na Bacia do Tarim, uma área desértica inóspita na região de Xinjiang, na China. Preservados naturalmente pelo ar seco do deserto, seus traços faciais e cor de cabelo são claramente discerníveis, apesar de terem até 4.000 anos de idade.
Enterrados com roupas feltradas e tecidas em túmulos incomuns em formato de barco, as chamadas múmias da Bacia do Tarim e sua variedade de influências culturais intrigam arqueólogos há muito tempo. Apesar de pertencerem a um grupo geneticamente isolado, esses indivíduos, no entanto, abraçaram novas ideias e tecnologias, de acordo com um estudo de outubro de 2021.
A nova pesquisa sugeriu que o povo Xiaohe não misturava diferentes tipos de leite animal ao fazer kefir, uma prática comum na produção tradicional de queijo no Oriente Médio e na Grécia, embora o motivo disso ainda não esteja claro.
“O povo Xiaohe teria feito o alimento da mesma maneira que os produtores tradicionais produzem o kefir hoje em dia, usando grãos de kefir previamente feitos (semelhantes à ‘mãe’ do kombucha ou ao fermento inicial de pão) que eram passados por meio de familiares, amigos e outros contatos sociais”, disse Taylor Hermes, professor assistente no departamento de antropologia da Universidade de Arkansas, que não participou da pesquisa.
“Isso é o que torna o estudo tão importante — podemos ver como esses recursos microbianos foram transmitidos e se espalharam por toda a Ásia”, acrescentou Hermes.
Evolução das bactérias probióticas
A equipe de Fu descobriu que as três amostras de queijo dos túmulos continham espécies bacterianas e fúngicas, incluindo Lactobacillus kefiranofaciens e Pichia kudriavzevii, respectivamente, ambas encontradas comumente em grãos de kefir atuais. Os grãos são uma mistura de bactérias probióticas e leveduras que fermentam o leite, transformando-o em queijo kefir.
Fu e seus colegas também sequenciaram os genes bacterianos do queijo kefir antigo, revelando informações sobre como as bactérias probióticas evoluíram ao longo dos últimos 3.600 anos.
Atualmente, existem dois principais grupos de bactérias Lactobacillus — um que se originou na Rússia e outro no Tibete, uma região autônoma da China, segundo o estudo. O tipo russo é amplamente utilizado globalmente, inclusive nos Estados Unidos, Japão e países europeus, na produção de iogurte e queijo.
Quando Fu e seus colegas compararam as bactérias do queijo kefir antigo com as espécies modernas, descobriram que ela estava intimamente relacionado a um grupo menos comum de Lactobacillus que se originou no Tibete.
As origens desses micro-organismos desafiam a crença amplamente aceita de que o kefir começou exclusivamente na região das Montanhas do Cáucaso, disse Fu.
“Este é um estudo sem precedentes, permitindo-nos observar como uma bactéria evoluiu ao longo dos últimos 3.000 anos. Além disso, ao examinar produtos lácteos, obtivemos uma visão mais clara da vida humana antiga e de suas interações com o mundo”, afirmou Fu em um comunicado. “Isso é apenas o começo.”
Hermes destacou como foi notável o fato de o queijo não só ter sobrevivido, mas também de ser possível sequenciar o DNA desse alimento. “A análise de DNA antigo, especialmente em microrganismos, está repleta de problemas técnicos, principalmente devido à contaminação por bactérias modernas”, ele acrescentou.
Quando realmente começou a produção de queijo?
Não foi surpreendente que o povo Xiaohe fermentasse queijo, disse Warinner. O processo tornava o leite mais fácil de digerir, com os micróbios produzindo ácido lático, que faz o leite coagular e formar a base do queijo.
“Na ausência de refrigeração, é praticamente impossível armazenar o leite por mais de algumas horas sem que ocorra uma fermentação espontânea. Portanto, provavelmente nunca houve uma época em que o leite e os produtos lácteos fossem usados sem fermentação,” afirmou ela.
“No entanto, com o tempo, as pessoas ficaram cada vez melhores em controlar esse processo e selecionar micróbios específicos que produziam os efeitos mais desejáveis na produção de laticínios,” acrescentou.
Embora o produto lácteo encontrado com as múmias seja o queijo intacto mais antigo no registro arqueológico, outras evidências, como proteínas animais em cálculo dental humano e resíduos de leite em cerâmica, sugerem que a produção do alimento se originou muito antes, provavelmente mais de 9.000 anos atrás, na Anatólia ou no Levante, observou Warinner.
A análise genômica realizada pela equipe foi realmente inovadora, disse William Taylor, professor assistente de antropologia na Universidade do Colorado Boulder e curador de arqueologia no Museu de História Natural da universidade.
“É incrível ver a complexidade dos produtos que essas pessoas estavam fabricando, algo que normalmente não é preservado no registro arqueológico”, disse Taylor, que não participou da pesquisa.
“Essas descobertas extraordinárias nos mostram que o queijo e outros produtos lácteos foram realmente a base de todo um modo de vida que continuaria sendo importante por milênios e ainda hoje é uma parte crucial da vida.”