A Polícia Civil do Ceará investiga uma denúncia de que o Ceará Sporting Clube teria usado um contrato com a casa de apostas Estrela Bet, patrocinadora do clube, para emitir mais de R$ 45 milhões em 85 notas fiscais falsas em 2023. Essas notas eram apresentadas a fundos de investimento como garantia para adiantamento de valores que o time de futebol não tinha direito a receber e canceladas até 72 horas depois da emissão.
A Estrela Bet falou classificou a prática do Ceará como criminosa e decidiu romper o contrato.
O presidente reeleito do clube, João Paulo Silva, e outras oito pessoas estão sendo investigados por formação de quadrilha, apropriação indébita e lavagem de dinheiro durante a gestão do time, que vai jogar a Série A do Campeonato Brasileiro no próximo ano.
Em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, Silva confirmou que emitia notas para cancelá-las posteriormente, sem permissão por contrato e sem o conhecimento da patrocinadora. Ele disse ainda não ter conhecimento do inquérito — o qual é público —, portanto não poderia comentar sobre ele.
Já em nota divulgada nas redes sociais nesta sexta-feira, 20, Silva disse não poder falar das questões do processo da forma como queria. “No entanto, afirmo que o nosso corpo jurídico competente teve acesso, há poucos dias, ao conteúdo do processo e tomará todas as medidas cabíveis para provar que tudo isso não passa de perseguição política.”
A articulação do presidente do Ceará
João Paulo Silva assumiu a presidência do Ceará em março de 2023, para um mandato tampão em meio a uma crise financeira. Ele era diretor financeiro do clube. Com o time rebaixado e sem recursos, ele usou o contrato com a Estrela Bet para gerar lastro e captar recursos, embora o acordo não autorizasse a emissão de notas fiscais e proibisse a antecipação de valores.
“Tinha uma necessidade do fundo de ter lastro [para a operação]”, admitiu Silva à Folha. “Para confortar essa necessidade do fundo, eu emitia as notas e depois cancelava.”
O executivo, entretanto, nega que o mecanismo seja algum tipo de fraude.
A Estrela Bet disse que não reconhecia as notas fiscais e fez diversas reclamações sobre a prática ao longo do ano, até romper unilateralmente o contrato em abril. Em documento, a empresa acusa o Ceará de violar disposições contratuais, além de infringir o Código Civil e outras leis civis, fiscais e criminais.
O distrato aconteceu depois que a Justiça aceitou um pedido de antecipação de provas feito por conselheiros de oposição no Ceará, que tiveram acesso às notas canceladas. Eles juntaram outros documentos obtidos a partir da decisão e os entregaram a uma auditoria independente.
O relatório da auditoria revelou que, apenas em 2023, o Ceará fez 40 termos de cessão de crédito, uma espécie de empréstimo, principalmente com três fundos da gestora CVPAR, antigos patrocinadores do clube. Essas transações foram lastreadas por essas notas fiscais emitidas coma Estrela Bet e rapidamente canceladas.
De acordo com a investigação, o esquema funcionava da seguinte forma:
- O Ceará pedia um empréstimo à CVPAR;
- Como garantia, o clube apresentava uma nota na qual atestava ter valor a receber da patrocinadora Estrela Bet;
- A CVPAR emprestava o dinheiro com base nas notas; e
- Dias depois, o Ceará cancelava a nota usada como garantia.
A CVPAR, que não é investigada, emprestava o dinheiro na expectativa de receber o valor integral da Estrela Bet, acrescido de juros. Porém, o contrato do Ceará com a patrocinadora proibia expressamente a “cessão/antecipação de recebíveis”. O documento seria de conhecimento da gestora de fundos, segundo pessoas a par das negociações ouvidas pela Folha.
De abril a dezembro de 2023, a CVPAR aceitou 85 dessas notas emitidas pelo Ceará, que foram canceladas em seguida.
Pelo contrato de patrocínio com a Estrela Bet, o Ceará receberia R$ 5 milhões no segundo semestre de 2023. Mas em uma única operação, em junho, a CVPAR aceitou 15 notas emitidas pelo clube sob o contrato mantido com a Estrela Bet, que somavam R$ 7,5 milhões e foram apresentadas como referentes ao patrocínio até o fim do ano.
Escritório ligado à gestora de fundos assessorou o clube nas operações
Para todas as operações, o Ceará contou com a assessoria do escritório de advocacia Vale & Vieira, ligado ao CEO da CVPAR, Cláudio Vale Vieira. O escritório era remunerado em cerca de 8,5% de tudo que o Ceará arrecadava com as notas junto aos fundos da gestora.
No total, a Vale & Vieira Advogados recebeu pelo menos R$ 1,9 milhão do Ceará em 2023.
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Em 2025, o Ceará Sporting Club estará de volta ao seu lugar: a elite do futebol brasileiro.
É hora de escrevermos mais um capítulo da nossa história de glórias.
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— Ceará Sporting Club (@CearaSC) November 24, 2024
A CVPAR, por sua vez, defendeu a legalidade das operações. “As operações são legítimas, regularmente lastreadas dentro da política de elegibilidade de créditos constantes do regulamento e foram devidamente liquidadas”, disse a empresa à Folha.
A gestora de fundos falou ainda que o Ceará tem “regular histórico de operações liquidadas, possuindo orçamento e receitas suficientes para honrar os seus compromissos”.
Por causa de dívidas com outros clubes, a Fifa, autoridade máxima do futebol profissional mundial, impôs restrições ao Ceará para registrar jogadores, mas o time conseguiu acesso à Série A com o patrocínio da CVPAR na última rodada. Quando indagada sobre o conhecimento do cancelamento das notas, a gestora afirmou que um “eventual cancelamento, se não comunicado, não é sabido”.
João Paulo Silva, em uma assembleia em abril, disse que os fundos estavam cientes da prática. Porém, em entrevista à Folha, ele disse que a CVPAR só descobriu a situação no início deste ano, antes da assembleia.
Já a CVPAR, por meio de nota oficial, disse que o Ceará é responsável pela origem e solvência dos títulos negociados e que o credor pode exigir o cumprimento das obrigações em caso de vícios ou questionamentos.
A Estrela Bet reafirmou à Folha que o contrato foi rompido formalmente, conforme as condições contratuais estabelecidas, e que a confidencialidade impede a divulgação de detalhes específicos.