Por Tiago Pavinatto
Em homenagem à didática, vamos imaginar a seguinte situação hipotética e fantasiosa: o Brasil chama-se Venezuela, e Alexandre de Moraes é Nicolás Maduro.
As autoridades locais, em especial o Supremo bolivariano, afirmam que a Venezuela é uma democracia e, Maduro, presidente eleito. Todavia, elas se negam a mostrar, ao seu povo e ao mundo, as atas que confirmariam a veracidade das duas afirmações.
No nosso exercício imaginário, as atas venezuelanas aparecem no lugar do Direito, Maduro faz as vezes de Moraes, juiz supremo constitucionalmente constituído, e a palavra democracia significa a mesma coisa, isto é, a legalidade funcional das suas Instituições.
Se as autoridades brasileira, em especial as do Supremo Tribunal Federal e o Procurador-Geral da República, afirmam que o Brasil é uma democracia e, Moraes, um ministro funcional, quer dizer, uma autoridade que exerce o seu cargo institucionalmente, por qual razão agem da mesma que os seus pares venezuelanos? Por que não mostram os mecanismos legais que atestam, como as atas do país vizinho atestariam a lisura das eleições de lá, o funcionamento democrático do Estado brasileiro e a institucionalidade das condutas de Moraes?
Contrariando a passividade agressiva ocultista que anima o discurso recitado em camoniano juridiquês incompreensível à população brasileira, convém proceder do mesmo modo que a oposição venezuelana ao mostrar as atas disponíveis: divulgamos o Direito brasileiro em bom português, que, tal como as atas da ditadura vizinha, contrariam as conclusões dos defensores de Moraes.
As “atas” brasileiras
A primeira “ata” brasileira é aquela da zona da Constituição Federal de 1988. No seu artigo 5º, constam, dentre tantas outras, as seguintes garantias:
- (a) a igualdade de todos perante a lei (caput);
- (b) só a lei, legislada pelo Congresso Nacional, pode criar obrigações e apenas a lei pode impor proibições (inciso II);
- (c) a livre manifestação do pensamento (inciso IV);
- (d) somente a lei, a mesma advinda do Poder Legislativo, pode estabelecer punições (inciso XXXIX);
- (e) toda discriminação deve ser punida (inciso XLI); e
- (f) a submissão do Brasil ao Tribunal Penal Internacional, que considera crime contra a humanidade a perseguição de pessoas em razão de ideologia política (inciso LXXIX).
Por fim, no § 2º do seu artigo 220, toda e qualquer censura de natureza política e ideológica é vedada.
“Regimentos, resoluções, regulamentos e portarias não são lei”
Tiago Pavinatto
A segunda “ata” está na zona das normas eleitorais reunidas na Lei nº 9.504/1997, que confere um direito de polícia sui generis aos tribunais eleitorais brasileiros. Seu artigo 41, no § 1º, concede aos juízes eleitorais um poder de polícia apenas e tão somente para atuar contra “propaganda eleitoral”. Esse artigo, importante destacar, veda qualquer censura prévia aos programas de rádio, televisão e internet.
Regimentos, resoluções, regulamentos e portarias não são lei. Servem apenas para orientar e estruturar o funcionamento oficial para a aplicação da lei. Não podem criar crimes, punições, obrigações nem proibições ao povo.
Em decorrência do estrito poder de polícia dado aos juízes eleitorais para atuar frente a propagandas eleitorais ilícitas, surge, no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), a famigerada Assessoria Especial de Combate à Desinformação. As “atas” da institucionalidade desse órgão estão nas seguintes Portarias do TSE: 510, de 4 de agosto de 2021, portaria que torna permanente o Programa de Combate à Desinformação adotado por uma portaria anterior, a 663, de 30 de agosto de 2019, que descreve as seis funções da tal assessoria criada para atender o programa. Todas estão no artigo 3º desta portaria: (i) integração interna das áreas e estruturas da Justiça Eleitoral para responder às desinformações com contrainformações; (ii) alfabetização midiática e capacitação populares; (iii) checagem de informações; (iv) cooperação para aperfeiçoamento legislativo nessa matéria; (v) aperfeiçoamento dos recursos tecnológicos; e (vi) instituição de medidas concretas para desestimular a prática de desinformação.
“Se dizem a verdade, porque não mostram as ‘atas’ da institucionalidade publicadas non ordenamento jurídico nacional?”
Tiago Pavinatto
Olhando essas “atas” brasileiras, fica claro que essa assessoria não tem poder de polícia fora da propaganda eleitoral. É incontroverso que ela não pode combater desinformação por outro meio que não seja a contrainformação. É evidente que ela não pode criar punições nem atuar sob demanda pessoal e discriminatória, principalmente fora do período eleitoral. Por fim, ela jamais pode atuar fora da jurisdição eleitoral nem sob demanda ou, o que é pior, encomenda do Supremo.
Logo, Moraes não agiu institucionalmente. Mentem o procurador-geral da República e os seus colegas ministros que afirmam que a sua atuação foi institucional. Mentem quando dizem respeitar o Direito do Estado Brasileiro. Mentem quando dizem que a democracia está inabalada. Se dizem a verdade, porque não mostram as “atas” da institucionalidade publicadas non ordenamento jurídico nacional? Não mostram porque não podem. Não mostram porque, tal como Maduro e seu Tribunal Supremo, sabem que estão mentindo.
Somos, como é a Venezuela, mais que uma ditadura enrustida. Vivemos em uma ditadura travestida com a minissaia da democracia, que é incapaz de esconder a proeminência dos ovos.
Tiago Pavinatto é advogado e jornalista. É o apresentador do Faroeste à Brasileira, programa que vai ao ar de segunda a sexta-feira, das 14h às 16h, no canal da Revista Oeste no YouTube