Existem vários ensaios proféticos de George Orwell, mas sem dúvidas, The Prevention of Literature e The Freedom of the Press são um libelo raro para os nossos dias — principalmente se formos brasileiros. Uma das teses esquecidas do escritor distópico é a de que a censura ditatorial não começa exatamente por meio da imposição estatal de silenciamentos seletivos, mas antes por meio de duas frentes: da aceitação da justificativa de medidas censoras por parte daqueles que mais deveriam batalhar pela liberdade de expressão; e pela tomada retórica e jurídica das instituições pelos “ditadores democratas”. Esse é o tema principal desses dois ensaios esquecidos de Orwell.
Se existia algo que realmente tirava o sono do convicto — porém extremamente crítico e lúcido — socialista inglês, era constatar que literatos, jornalistas e incontáveis intelectuais ocidentais de seus dias não só defendiam de forma aberta e decidida ditaduras como a soviética, como em inúmeros casos escreviam obras, distorciam e até mesmo escondiam notícias que poderiam manchar a imagem de suas ditaduras de estimação. Além desses, falava Orwell, existiam ainda os que escondiam suas preferências ditatoriais atrás de retóricas como “a liberdade de expressão é uma afirmação burguesa” ou “devemos defender, sim, a liberdade de expressão, porém, antes é necessário que haja um autoritarismo virtuoso para derrubar a direita”.
Orwell foi um dos poucos socialistas moralmente engajados em jamais aceitar tais argumentos. É fato que ele jamais rompeu publicamente com o socialismo até o fim de sua vida, mas não deixou de elogiar aquilo que chamou de “democracia liberal” e sua defesa decidida da liberdade individual — pauta que no século XX era amplamente sustentada por liberais e conservadores, e não por socialistas. Sua denúncia sobre a cumplicidade de intelectuais e escritores ocidentais com as ditaduras comunistas poderia bem ser explicada pelo termo utilizado pelo filósofo José Ortega y Gasset em seu monumental livro A Rebelião das Massas; para o filósofo espanhol, tal postura trata-se de um claro “acanalhamento”, isto é, a posição consciente de defender, ao mesmo tempo, duas posições antagônicas, sabendo que são inconciliáveis, mas que, para todos os efeitos, garantem ao portador da contradição um espaço intelectual mais aconchegante e lucrativo ante determinado público ou empresa. Afinal, as pessoas sempre pagaram para ter suas ideias confirmadas e fundamentadas.
Entre as teses defendidas por Orwell nesses dois ensaios citados acima, é notável aquela na qual ele afirma que uma ditadura nasce quando suas instituições passam a ser artificiais, isto é, quando elas passam a viver um teatro tragicômico, um faz de conta de legalidade, enquanto, na verdade, estão em plena disputa pelo poder absoluto de uma máquina estatal. Falam de direito, mas o direito se foi; falam de liberdade, mas a regulam até que a tal “liberdade” diga somente o que é permitido por eles; falam de democracia, mas controlam a vontade popular valendo-se do poder policial e judicial. Arrisquei-me a traduzir o seguinte trecho, pois vale a pena ler do próprio escritor inglês:
Uma sociedade se torna totalitária quando sua estrutura passa a ser flagrantemente artificial, ou seja, quando sua classe dominante perdeu sua função, mas consegue se agarrar ao poder pela força ou pela fraude. Tal sociedade, não importa por quanto tempo persista, nunca poderá se dar ao luxo de ser tolerante ou intelectualmente estável. Ela nunca poderá permitir o registro verdadeiro dos fatos ou a sinceridade emocional que a criação literária exige.
A citação veio de The Prevention of Literature; e o mais assustador é que no trecho, embora Orwell estivesse definindo o modus operandi do regime soviético, a sua conceituação parece delinear muito mais e melhor a maneira de agir das ditaduras progressistas atuais. Isto é: o rapto institucional dos poderes de uma democracia, seguido da imposição, por vias formais, de uma ideologia ou modo de poder que garanta a perpetuação de uma visão política. Na verdade, parece que o escritor escreveu tal texto apenas ontem.
Em outra passagem, agora do ensaio The Freedom of Press, Orwell afirma:
Um dos fenômenos peculiares de nosso tempo é o liberal renegado. Além da conhecida alegação marxista de que a “liberdade burguesa” é uma ilusão, há agora uma tendência generalizada de argumentar que só é possível defender a democracia por meio de métodos totalitários. Se alguém ama a democracia, diz o argumento, deve esmagar seus inimigos por qualquer meio que seja. E quem são seus inimigos? Sempre parece que eles não são apenas aqueles que a atacam aberta e conscientemente, mas também aqueles que “objetivamente” a colocam em perigo ao disseminarem doutrinas equivocadas. Em outras palavras, defender a democracia envolve destruir toda a independência de pensamento.
O que Orwell explica acima é que os agentes que sequestram as instituições de um país até podem se declarar “liberais” ou “democratas”, mas, como precisam levar adiante a missão de poder, assumem prontamente aquela carapuça de contradição que Ortega chamava de “acanalhamento”. Eles entendem que essa tal “liberdade de expressão”, que muitos críticos do regime vociferam, não passa de um “instrumento burguês” ou “conservador” a fim de implantar uma ditadura. E para isso valem-se de desinformação, narrativas e fantasias.
E assim, é claro, para salvaguardar a reta “democracia”, deve-se utilizar todos os instrumentos de defesa institucional, desde a subversão jurídica e política até a demonização pública e encarceramento de opositores. Ou seja, para ser democrata ‒ já havia notado Orwell na visão dos comunistas do século XX ‒ é preciso antes ser ditador.
O próprio ensaio The Freedom of Press foi censurado pelos editores de A Fazenda dos Animais ‒ ou, como é mais conhecido aqui, A Revolução dos Bichos ‒, e embora tenha sido escrito em 1944 para ser prefácio do livro citado, só foi publicado em 1972 no The Times Literary Supplement. Ou seja, Orwell sabe bem, não só pela época em que viveu, mas por ter sido ele mesmo vítima de censores, como funcionava o mecanismo interno de uma mentalidade ditatorial. 1984 é o seu grande tratado sobre o tema.
George Orwell devia ser redescoberto no Brasil, e não somente por meio de A Fazenda dos Animais e 1984, mas também por seus artigos e ensaios publicados em jornais e revistas. Sua clareza moral e política são louváveis e inspiradoras, um socialista que soube quando devia ceder quanto aos defeitos de suas crenças, bem como lutar ao lado de liberais e conservadores quando valores primordiais e inegociáveis se encontravam ameaçados. Acima de tudo, foi um intelectual livre, que manteve até o fim aquele brio que falta às toneladas para mais da metade dos jornalistas ocidentais antigos e contemporâneos. Orwell parece ter sido aquele tipo raro de homem que não se dobrou, nem mesmo ante os defeitos da ideologia que assumia como sua, pois, para um homem de caráter, é notável que a verdade está acima de seus fetiches e preferências políticas.