(J. R. Guzzo, publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 23 de outubro de 2024)
Tente pensar com serenidade numa dessas questões inconvenientes para o bem-estar da sua consciência, do seu senso moral e da sua capacidade de pensar de modo racional — exercício sem dúvida muito chato, às vezes arriscado e raramente lucrativo. A questão é a seguinte: é possível, honestamente, dizer que o Brasil é uma democracia quando um cidadão que você acha detestável é oficialmente privado pela Justiça de seus direitos fundamentais e indiscutíveis?
A pergunta é de fato incômoda. Sempre é, quando é preciso escolher entre ideias que você acha corretas e fatos que deixam clara, no mundo das realidades, a colisão frontal entre suas convicções e a lei. A tentação é substituir aquilo que as leis mandam fazer por aquilo que a pessoa acha certo, ou justo, ou necessário para o bem comum. Acontece o tempo todo no Brasil de hoje. Tornou-se o “novo normal”, como durante a covid, adotar comportamentos irracionais em nome de um bem supremo — a democracia.
Qual é a racionalidade, do ponto de vista da moralidade legal, do que está sendo feito com o ex-deputado Daniel Silveira, por exemplo? Os fatos mostram que ele é, ou foi, um político de direita — ou de extrema direita, como é obrigatório dizer no vocabulário político em vigor. Está comprovado, também, que levou ao ar um vídeo com ofensas aos ministros do STF, ou ameaças, segundo a acusação que lhe foi feita. A partir daí, seus direitos como cidadão foram extintos.
Uma coisa não tem nada a ver com a outra: o caráter do indivíduo não pode determinar qual a pena que deve ser aplicada por sua conduta. No caso do deputado, a máquina do Estado e as classes culturais decidiram, e vivem em pleno conforto com essa decisão, que a lei brasileira não pode ser aplicada. É como se ele fosse um vegetal. O STF determinou que Daniel Silveira, por ter feito o que fez, colocou-se fora da proteção que a Constituição Federal estabelece para todos os cidadãos do Brasil.
O deputado, em primeiro lugar, não poderia ter sido preso em flagrante, pois o delito do qual é acusado não foi cometido em flagrante. É um fato. O ministro Alexandre de Moraes mandou prender Silveira dias depois do vídeo ser divulgado — o flagrante perpétuo, criação sem equivalentes no Direito mundial. Pior que isso, ele não podia ser preso, ponto final. Não se trata de uma opinião. É o que está escrito no artigo 53 da Constituição: nenhum deputado ou senador pode ser punido, civil ou penalmente, por “quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”.
A palavra “quaisquer” quer dizer “todas” — sem exceção. Mas, no caso de Silveira, o STF decidiu que esse “quaisquer” não inclui o que ele disse no vídeo. Isso não existe. O STF não tem o direito de redefinir, ou “ressignificar”, o dicionário da língua portuguesa, nem o significado das palavras do idioma nacional. A Câmara dos Deputados também não — o que torna a “licença” que deu para Silveira ser processado penalmente um ato de delinquência.
O deputado teve as suas contas bancárias bloqueadas — mais as contas de sua mulher, punição que não tem nada a ver com o que está escrito no Código Penal. O que fez, como provam os fatos, é definido pela lei como crime de injúria e, possivelmente, de ameaça. Foi condenado a oito anos e nove meses de prisão fechada por um delito que não existe: “ameaça ao Estado Democrático de Direito”. Foi indultado em decreto do presidente da República na época; o STF anulou o indulto.
As arbitrariedades do STF
O advogado de Daniel Silveira foi punido pelo ministro Moraes por fazer recursos demais em favor do seu cliente — sem que houvesse nenhuma prova de “litigância de má-fé” na sua conduta, e sem que lhe fosse dado o direito de se defender da acusação. Está proibido de se comunicar pela internet. Enfim, e provavelmente pior do que tudo, o deputado cumpriu a sua pena e continua preso — agora numa colônia penal.
Teria de ficar preso, pela lei que regula o cumprimento das penas no Brasil, até completar 25% da punição de oito anos e nove meses a que foi condenado. Já cumpriu 30%, e apesar de 60 petições solicitando a sua passagem para o regime de prisão domiciliar, o máximo que conseguiu foi ser internado numa penitenciária agrícola. Julgado diretamente na última instância, Silveira não pode recorrer de nenhuma das decisões que são tomadas contra ele.
Cinco anos e meio atrás, quando o STF declarou um inquérito policial como a lei máxima do país, no lugar da Constituição, o Brasil acordou transformado num gigantesco inseto moral. A metamorfose, na verdade, não mudou propriamente o Brasil. Também não mudou os escroques ideológicos que sempre defendem a abolição da lei quando isso beneficia seus interesses.
Mudou uma parte das pessoas. Cidadãos de bem, cumpridores da lei e capazes de distinguir o certo do errado se transformaram em linchadores. Estão achando correto, justo e necessário tudo o que foi descrito acima.
Vai se tornando uma norma social e um dever cívico, no Brasil de hoje, considerar que os ministros do STF têm o direito de decidir o que é ou não é democrático. Se não for, na sua opinião, os acusados de atentar contra a democracia não podem invocar a proteção da lei, pois estariam se utilizando das regras constitucionais para eliminar a Constituição. Mais que isso, considera-se perfeitamente normal o STF definir o que é “golpe de Estado”.
O Supremo impõe ao Brasil há quase dois anos uma ficção desprovida de nexo lógico, contrária às evidências materiais e mal-intencionada. Alega-se, e isso se tornou o mandamento número 1 do ordenamento jurídico do país, que um quebra-quebra no qual as armas mais potentes eram dois estilingues, e do qual não participou uma única pessoa com um mínimo de influência em nada, foi um “golpe”. Pela primeira vez na História tentou-se derrubar o governo sem tanques de guerra na rua, fuzileiros navais e paraquedistas.
Estes, por sinal, estavam contra o golpe dos motoboys, manicures, pedreiros e toda uma multidão que não tinha um tostão no bolso. Como seria possível a um vendedor de algodão-doce enfrentar os generais, destituir o presidente da República e implantar uma ditadura no Brasil? A metamorfose brasileira transformou uma proposição irracional em verdade praticamente científica — algo que não pode mais ser discutido, como o fato de que o ângulo reto tem 90 graus, ou que a raiz quadrada de 100 é 10.
A condenação de Daniel Silveira é um resumo do quadro psicótico que é hoje a democracia brasileira, segundo as regras do STF, as suas forças de apoio e seus serviços de propaganda. É o retrato do Comitê de Salvação Pública instalado em Brasília. Como na época da guilhotina, a aplicação da lei pode levar à absolvição do réu — e isso, como a constatação de que o golpe de 8 de janeiro não aconteceu, será um risco de morte para o Estado Democrático de Direito. Democracia sem lei é democracia morta. É o que o país tem hoje.