A série “Adolescência“, da Netflix, tem gerado intensos debates ao abordar questões sociais contemporâneas que afetam especialmente os jovens. Um dos temas centrais é a chamada cultura incel: uma subcultura digital perturbadora que, nos últimos anos, tem crescido em influência e periculosidade.
Neste artigo, vamos explicar o que são os incels e como esse conceito se conecta à trama da série.
Entenda o contexto da série e sua conexão com a misoginia
ALERTA DE SPOILER! Esse parágrafo tem revelações do enredo da série. Leia por sua conta em risco.
A série começa com um momento impactante; Jamie Miller, um garoto de apenas 13 anos, é preso acusado de matar uma colega de escola. E ao longo dos quatro episódios, acompanhamos a trajetória de um jovem solitário, deslocado socialmente, que acaba sendo capturado por discursos de ódio em fóruns anônimos na internet.
Esses espaços funcionam como câmaras de eco para ideologias misóginas, apresentando a violência contra mulheres como uma forma de “retribuição” ou “justiça” para homens que se consideram rejeitados pela sociedade.
Incel, bluepill, redpill e mais: conheça parte da cultura da internet que foi retratada na série Adolescência
Antes de entrarmos em termos mais específicos, é importante definir o que é misoginia. Misoginia é o ódio, desprezo ou preconceito contra mulheres. Ela pode se manifestar por meio de atitudes, discursos ou atos de violência.
Na série, esse fenômeno fica em evidência a partir das interações online de Jamie com comunidades que culpam as mulheres por suas frustrações pessoais, reforçando um ciclo de ressentimento e raiva.

O que é um incel?
A palavra incel vem da expressão inglesa involuntary celibate (celibatário involuntário). O termo foi criado nos anos 1990 pela canadense Alana Boltwood, com o intuito inicial de criar um espaço seguro para homens e mulheres compartilharem suas dificuldades em encontrar parceiros afetivos ou sexuais.
No entanto, ao longo dos anos, a internet transformou esse espaço em algo muito diferente. Hoje, a subcultura incel é composta quase exclusivamente por homens jovens que se consideram incapazes de se relacionar com mulheres e culpam elas e a sociedade como um todo por isso. Nessas comunidades, os membros expressam com frequência discursos cheios de ressentimento, misoginia e ideias extremistas.

Incels nos ambientes digitais
A internet se tornou o principal espaço de articulação dos incels, que formam comunidades para reforçar crenças misóginas e, muitas vezes, disseminar conteúdos violentos. O anonimato e a facilidade de conexão global favorecem a radicalização desses grupos.
Plataformas como 4chan, 8chan, Reddit, Telegram e Discord são usadas para reunir homens com frustrações semelhantes. O Discord, em especial, plataforma muito utilizada por fãs de games onlines, se destaca por atrair jovens, permitir a criação de grupos privados e contar com moderação descentralizada, fatores que dificultam o controle de discursos extremistas.
No Brasil, esse tipo de cultura começou a se consolidar no início da década de 2010. Fóruns como o Dogolachan abrigaram discursos de ódio associados a crimes como o massacre de Suzano (2019). Outro caso relevante é o da professora e feminista Lola Aronovich, que passou a receber ameaças após criticar o comportamento misógino em seu blog “Escreva, Lola, escreva”.

A cultura incel e seus códigos
A cultura incel se sustenta em uma visão distorcida das relações afetivas e sexuais. Em sua base, está a ideia de que homens considerados “inferiores” são sistematicamente rejeitados por mulheres, que escolheriam apenas os parceiros mais atraentes e bem-sucedidos, os chamados Chads.
Essa lógica se apoia em uma crença pseudocientífica conhecida como regra 80/20, segundo a qual 80% das mulheres estariam interessadas apenas em 20% dos homens. Ao longo do tempo, essa subcultura desenvolveu termos, códigos e símbolos próprios. Abaixo, explicamos os principais conceitos:
Termos e símbolos comuns
- Red pill: “acordar” para a suposta verdade de que o mundo é injusto com os homens.
- Blue pill: permanecer “cego” ao sistema que favoreceria as mulheres.
- Blackpill: o estágio mais radical, que acredita não haver solução; o fracasso dos incels seria biológico, genético e irreversível.
- Chad: o estereótipo do homem idealizado: bonito, atlético, confiante. O inimigo simbólico dos incels.
- Stacy: mulher jovem, atraente, vista como fútil e promíscua. Desejada pelos Chads, despreza os incels.
- Becky: mulheres que são vistas como comuns, medianas ou “sem graça”, especialmente em comparação com a idealizada Stacy.
- Sigma: arquétipo masculino “lobo solitário”, admirado por incels por ser solitário, autossuficiente e “acima do sistema”, uma espécie de Chad antissocial.
- Beta: homem considerado submisso, mediano ou inferior na “hierarquia social dos machos”.

Estruturas da subcultura incel
- Chans: fóruns anônimos como 4chan, Dogolachan e 55chan, marcados por linguagem críptica, posts efêmeros e conteúdo extremista. No Brasil, também há o Magochan, voltado a jovens isolados.
- Channers: usuários desses fóruns, reconhecidos por gírias internas, hostilidade a novatos, trolling e a difusão de ideias misóginas e violentas.
- Falhos: como alguns se autodenominam, são homens que se veem como fracassados e socialmente excluídos. Em casos extremos, incentivam ataques violentos como forma de vingança. Os autores do massacre de Suzano (2019) usavam essa identidade.
- Atcvm Sanctvm (“Ato Santo”): expressão usada para glorificar massacres como os de Realengo (2011) e Suzano (2019), tratados por alguns membros desses fóruns como atos de “purificação”.
Redpill: a metáfora que virou movimento

O conceito de “redpill” (pílula vermelha) surgiu no filme “Matrix” (1999), como uma metáfora para despertar para uma realidade oculta. No entanto, o termo foi apropriado por comunidades online, especialmente em fóruns como Reddit e 4chan, e passou a simbolizar um “despertar” para supostas verdades sobre as relações de gênero.
Essa ideologia propaga a ideia de que os homens perderam espaço na sociedade e que precisam adotar comportamentos “estratégicos” e dominantes para recuperar sua posição. Os adeptos, chamados de redpillers, defendem valores como:
- Realismo social: acreditam ver a sociedade como ela realmente é, sem o que chamam de “ilusão progressista”.
- Masculinismo: valorização de atributos como força, frieza emocional e liderança.
- Críticas ao feminismo: alegam que o movimento feminista teria deixado de buscar igualdade e agora favoreceria as mulheres.
- Hierarquia nas relações: defendem que homens devem assumir o papel de “macho-alfa” para obter respeito e sucesso afetivo.
MGTOW e outras vertentes do masculinismo online

Dentro do universo das comunidades masculinas na internet, também chamada de manosfera, hpa outros movimentos expressam visões misóginas e ressentidas em relação às mulheres.
Um dos mais notórios é o MGTOW (“Men Going Their Own Way” ou “Homens Seguindo Seu Próprio Caminho”). Diferente dos incels, que desejam relacionamentos, mas se sentem rejeitados por mulheres, os MGTOW optam por se afastar completamente de vínculos afetivos, alegando que a sociedade moderna “dominada pelo feminismo” penaliza os homens em esferas como casamento, divórcio e paternidade.
Outro segmento da manosfera são os PUAs (“Pick-Up Artists”), que compartilham técnicas de sedução baseadas na manipulação e objetificação de mulheres, reforçando estereótipos misóginos e dinâmicas de poder abusivas.
A manosfera como porta de entrada para a radicalização
A conexão entre a manosfera e a extrema-direita é um objeto crescente de estudo por pesquisadores de radicalização digital. Esses espaços online oferecem:
- Explicações simplistas para frustrações pessoais.
- A construção de um “inimigo comum” (como feministas, progressistas, elites e imigrantes).
- Um senso de pertencimento e propósito, especialmente entre jovens vulneráveis a discursos de ódio.
A intersecção entre misoginia, frustração sexual e ideologias extremistas tem se mostrado um terreno fértil para o recrutamento e a radicalização de homens, com impactos preocupantes tanto no ambiente virtual quanto no mundo real.