quarta-feira, novembro 27, 2024
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O pouco conhecido genocídio cometido pela Alemanha na Namíbia antes do Holocausto

Ao apoiar Israel em tribunal internacional, Alemanha fez a Namíbia resgatar as atrocidades que o país europeu cometeu no período colonial.

Cerimônias neste sábado (27) em diversos países vão marcar o Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto — uma data estipulada pelas Nações Unidas para lembrar as atrocidades cometidas pelos nazistas contra judeus, além de outras minorias.

Em 27 de janeiro de 1945, tropas soviéticas libertaram o campo de concentração de Auschwitz.

Neste ano, as cerimônias ganharam mais peso diante da guerra em Gaza e do ataque do Hamas contra Israel em outubro do ano passado — que matou 1,3 mil pessoas e fez 240 reféns.

A reação de Israel provocou a morte de mais de 25 mil pessoas em Gaza, segundo o Ministério da Saúde controlado pelo Hamas.

No Tribunal Internacional de Justiça em Haia, a África do Sul acusa Israel de cometer um genocídio contra os palestinos.

A discussão internacional sobre Israel acabou jogando luz sobre outro genocídio perpetrado pela Alemanha além do Holocausto — e que ainda causa controvérsias e desavenças nos dias de hoje.

A Alemanha manifestou apoio a Israel no tribunal de Haia — e isso despertou críticas da Namíbia, país africano que sofreu com atrocidades alemãs no início do século 20.

“Tendo em conta a história da Alemanha e o crime contra a humanidade do Holocausto, o governo considera-se particularmente comprometido com a convenção do genocídio”, afirmou em nota o governo alemão durante os procedimentos jurídicos no tribunal de Haia.

O presidente da Namíbia, Hage Geingob, fez um apelo para que a Alemanha a reconsiderasse sua decisão.

Em 2021, após mais de 100 anos, Berlim reconheceu ter cometido um genocídio na Namíbia.

Os colonizadores alemães massacraram mais de 70 mil pessoas dos povos herero e nama entre 1904 e 1908. Historiadores consideram este o primeiro genocídio do século 20.

Geingob disse que a Alemanha não poderia “expressar moralmente o compromisso com a Convenção das Nações Unidas contra o genocídio, incluindo a reparação pelo genocídio na Namíbia” e ao mesmo tempo apoiar Israel.

“O governo alemão ainda não reparou totalmente o genocídio que cometeu em solo namibiano”, acrescentou.

Genocídio alemão na Namíbia

São profundas e antigas as feridas deixadas pela Alemanha na Namíbia após o que agora é reconhecido como um genocídio perpetrado por forças coloniais.

Em 2021, ao reconhecer oficialmente as atrocidades que cometeu, a Alemanha ofereceu ao país africano uma quantia em dinheiro como compensação.

Mas como se compensa a destruição de uma sociedade inteira? Que preço colocar?

A Alemanha concordou em pagar mais de US$ 1 bilhão.

“À luz da responsabilidade histórica e moral da Alemanha, pediremos desculpas à Namíbia e aos descendentes das vítimas”, disse o então ministro das Relações Exteriores, Heiko Maas, em 2021.

O ministro acrescentou que seu país, em um “gesto de reconhecimento ao imenso sofrimento infligido às vítimas”, apoiaria o desenvolvimento da nação africana através de um programa que deve custar mais de US$ 1,3 bilhões.

A quantia será paga em 30 anos e investida em infraestrutura, assistência médica e programas de treinamento que beneficiam comunidades afetadas.

Na época, alguns líderes namibianos se recusaram a apoiar o acordo. Descendentes de vítimas e colonos debateram ferozmente sobre o valor financeiro associado ao genocídio.

A colônia alemã no sudoeste africano

“Ao longo de toda essa praia havia um campo de concentração”, diz Laidlaw Peringanda, ativista e chefe da Associação sobre o Genocídio da Namíbia. “O arame farpado passava onde hoje está o estacionamento.”

O artista e ativista aponta para uma fileira de cafés ao ar livre e um parquinho infantil à beira-mar em Swakopmund, o principal resort costeiro da Namíbia, onde as águas frias do Atlântico batem às margens do deserto do Namibe.

Swakopmund é uma das praias mais visitadas da Namibia — Foto: Getty Images/Via BBC

“Minha bisavó contou que alguns membros de nossa família foram trazidos para cá, foram forçados a trabalhar, e morreram.”

Ele se refere aos anos 1904-1908, quando a atual Namíbia era uma colônia alemã no sudoeste da África.

Dezenas de milhares de pessoas foram mortas quando as forças coloniais reprimiram brutalmente levantes organizados por dois dos principais povos do país, os herero e os nama, matando a maioria deles e levando os demais para o deserto de Omaheke, no leste do país, onde muitos morreram de fome.

Os sobreviventes acabaram em campos onde foram usados ​​como mão-de-obra escravizada.

Estima-se que cerca de 65.000 dos 80.000 hereros que viviam no sudoeste da África sob o domínio alemão tenham morrido, bem como em torno de 10.000 de uma população estimada de 20.000 nama.

Se não morriam de fome, morriam de exaustão, sede ou tiros. O estupro de mulheres foi sistemático.

Centenas de crânios de vítimas foram enviadas à Alemanha para estudos sobre diferenças raciais que tentavam identificar uma superioridade dos brancos. Vinte desses crânios foram devolvidos de um hospital em Berlim para a Namíbia em 2011.

As atrocidades cometidas foram descritas por historiadores como o “genocídio esquecido” do início do século 20.

Laidlaw Peringanda em uma fossa comum de vítimas de campos de concentração — Foto: BBC

‘Qualquer herero, com ou sem armas, será executado’

As potências europeias selaram a divisão da África na conferência de Berlim, em 1884. A Alemanha, que tinha colônias no território atual de Camarões, Togo e Tanzânia, também anexou a costa sudoeste do continente africano, hoje pertencente à Namíbia.

Lá, a Alemanha expulsou comunidades de suas terras, que foram entregues a colonos alemães. A população nativa foi submetida a todo tipo de abuso.

Em 1903, os guerreirosherero e nama se rebelaram, lançando ataques que mataram dezenas de colonos.

A Alemanha respondeu implacavelmente.

Em 1904, o imperador alemão, Kaiser Wilhelm 2º, despachou cerca de 14.000 soldados para a Namíbia sob o comando de Lothar von Trotha, o general que reprimiu brutalmente rebeliões nativas na China e na África Oriental.

Aqueles que sobreviveram a batalhas como a de Waterberg foram mortos ou forçados a entrar no deserto de Kalahari, onde soldados alemães envenenaram poços de água.

A mensagem de Von Trotha aos hereros não deixa margem para dúvidas: “Eu, general dos soldados alemães, mando esta carta aos herero. A nação herero deve deixar o país… Se recusarem, eu os forçarei com tiros de canhão… Qualquer Herero, com ou sem armas, será executado.”

Trem transportando prisioneiros hereros para o campo de concentração em 1904 — Foto: Getty Images/Via BBC

“Von Trotha disse a seus soldados que eles não perderiam sua honra atirando em mulheres e crianças. Eles atiravam para assustá-los e forçá-los a fugir para o deserto, onde enfrentariam morte certa de sede e fome”, afirma Reinhart Koessler, professor do departamento de ciência política na Universidade de Freiburg e acadêmico especializado em memória política, tendo estudado o passado colonial da Alemanha na África Ocidental por duas décadas.

Para Koessler, as palavras de Von Trotha “eram uma intenção clara de extermínio, e é isso que constitui genocídio, a vontade de eliminar um grupo étnico”.

O estupro de mulheres herero e nama foi tão comum que muitos descendentes agora têm ascendência alemã.

“Sou descendente direto dos herero. Meus avós paternos e maternos tinham sangue alemão nas veias devido ao abuso sexual que os soldados alemães cometeram contra meu povo”, conta Ngondi Kamatuka, presidente em exercício da Associação Ovaherero contra o Genocídio no Estados Unidos.

Dinheiro e terras

Por muitos anos, uma das questões mais importantes para os namibianos era como um acordo de compensação material poderia ser alcançado.

Laidlaw Peringanda, como a maioria dos hereros, foi claro: deveria haver um enorme aporte financeiro para ajudar a restaurar a prosperidade que ele acredita que seu povo desfrutava antes do genocídio, como criadores de gado.

Posteriormente, a maior parte das terras do país foi dividida em fazendas particulares e dadas a colonos alemães.

E hoje a maioria dos herero e nama vive em áreas pequenas e superlotadas de terras comunais que mais tarde lhes foram atribuídas, ou nas aldeias, “assentamentos informais” e favelas que abrigam 40% da população da Namíbia.

Em Swakopmund, há um enorme abismo social entre o belo centro da cidade da era colonial, com seus edifícios pintados em tons pastel, lar de muitos netos e bisnetos dos colonos originais, e as favelas construídas com tábuas e placas de metal que se estendem por milhas ao norte do país.

Barracos feitos com madeira e chapas de metal se estendem por quilômetros ao norte do país — Foto: BBC

“Eles não têm banheiros, não têm água encanada, não há eletricidade”, diz Laidlaw.

“Algumas das pessoas que lá vivem são descendentes das vítimas dos campos de concentração. É realmente injusto o que está acontecendo”.

A esperança é que o dinheiro do governo alemão seja usado para financiar um programa de reforma agrária que permitirá que as fazendas de agricultores alemães da Namíbia sejam compradas e distribuídas entre os herero e nama.

Acredita-se que os namibianos alemães sejam o maior grupo entre os fazendeiros brancos, que possuem cerca de 70% das terras agrícolas do país.

Algumas de suas propriedades são vastas — uma só delas, por exemplo, cobre mais de 1.000 km².

O principal negociador da Namíbia, embaixador Zed Ngavirue, disse antes do anúncio do acordo que a Alemanha “reconheceu que precisa fazer algo para nos ajudar a reconstruir nossa sociedade”.

Mas ele acrescentou: “Não quero me enganar achando que a Alemanha vai resolver o problema da terra. Não estamos apenas falando sobre a perda de terras como resultado da colonização alemã.”

Depois que a Alemanha perdeu sua colônia na Primeira Guerra Mundial, muitos outros colonos chegaram, e o sudoeste da África foi governado pela África do Sul por 70 anos.

Desde a independência em 1990, tanto namibianos quanto estrangeiros compraram terras no país.

Ceticismo

Não são só os descendentes das vítimas que permanecem céticos em relação às medidas de reparação.

O mesmo acontece com alguns dos cerca de 30.000 homens e mulheres que falam alemão e ficaram na Namíbia: os descendentes de colonos.

“O mito do genocídio nada mais é do que chantagem moral”, disse o historiador Andreas Vogt.

Como muitos teuto-namibianos, Vogt afirma que a infame “ordem de extermínio” assinada em 1904 pelo comandante das forças coloniais, general Lothar von Trotha, não era uma política de Estado e nunca foi implementada.

A ordem afirmava que “qualquer herero encontrado dentro da fronteira alemã, com ou sem arma, será executado”.

Em Swakopmund, existe um enorme abismo social entre o belo centro da cidade da era colonial e os barracos improvisados ​​que se estendem ao norte — Foto: Getty Images/Via BBC

“A representação de, por um lado, uma autoridade colonial alemã genocida brutal e implacável e, por outro, o povo herero imaculado e completamente inocente está contaminada. São necessárias duas partes para fazer as coisas acontecerem”, disse Vogt.

Ele e outros namibianos alemães apontam que os herero se rebelaram contra o domínio alemão em 1904, matando cerca de 120 colonos alemães, mas foram posteriormente derrotados na batalha decisiva de Waterberg.

Em 2020, Anton von Wietersheim, um teuto-namibiano que serviu como ministro do governo logo após a independência, ajudou a lançar uma iniciativa para encorajar os namibianos de língua alemã a discutir o passado, tanto entre eles quanto em com representantes dos herero e nama

Armada alemã em posição de ataque em 1904 — Foto: Getty Images/Via BBC

O acadêmico e ativista germano-namibiano Henning Melber, que estudou os antecedentes das negociações, afirma que outras ex-potências coloniais da Europa expressaram preocupação à Alemanha de que o acordo com a Namíbia iria gerar uma enxurrada de reivindicações contra vários colonos por parte de nações africanas, do sudeste asiático e de outros lugares.

A Tanzânia, sucessora de outra ex-colônia alemã, Tanganica, já está exigindo reparações pelas atrocidades e, potencialmente, outras ex-colônias poderiam fazer o mesmo.

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