O capitalismo (o mundo dos negócios, das finanças, chame como quiser), por algum motivo misterioso, adora o mito do CEO super-homem, aquele (quase sempre) homem (sempre) branco supostamente brilhante e rebelde que “contra tudo e contra todos” consegue “sozinho” levar ideias e negócios a serem enormes sucessos.
Basta haver alguém minimamente responsável por alguma empresa que valha dinheiro e lá estão as capas de revistas, da Forbes à Rolling Stone, os numerosos seguidores nas redes sociais, os livros analisando desde as catotas de nariz até as namoradas da adolescência para entender “o gênio”.
Bem: o mundo dos negócios também se alimenta de narrativas. E narrativas com personagens vendem mais. Jack Welch, o lendário CEO da GE, ajudou a tornar a marca referência de qualidade. Bill Gates foi a face da Microsoft dominante, para o bem e para o mal.
E se as pessoas soubessem quem é o CEO da Samsung elas poderiam comparar ele com Steve Jobs e achar seus telefones um pouquinho mais glamurosos? Vende mais, ajuda a construir a reputação da marca e gera dinheiro. E o objetivo de uma empresa é esse: fazer dinheiro.
O objetivo do jornalismo, porém, deveria ser outro. Por motivos diferentes, porém, o jornalismo também adora um mito.
Financistas adoravam Jack Welch, mas se não fossem sua presença midiática e sua autobiografia a personalidade não teria metade do tamanho que adquiriu. E talvez o jornalismo adore um mito pelo mesmo motivo que os capitalistas: também no jornalismo é importante contar uma história, e mitos simplificam a tarefa de contar histórias, além de prender a atenção do público.
O problema é que a história que o jornalismo deveria contar é, em teoria, necessariamente incompatível com a criação de mitos. Cabe ao jornalismo apresentar a história como ela é, de acordo com o interesse público. Não é assim que funciona a produção de mitos.
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O novo Super-Homem da galera é Sam Altman, o ex-(talvez atual de novo) CEO do ChatGPT (sim, pedantes, da OpenAI). Não é difícil entender por que ele: o capital gosta dele porque a empresa dele vale dinheiro, e passou a valer mais dinheiro depois que ele virou CEO; os jornalistas gostam dele porque quando escrevem sobre ele no modo Super Herói as pessoas clicam. E se escrevessem algo na linha “Fulano não é tão importante assim” ninguém ia ler.
A história da demissão do Super-Homem já gerou, só na minha caixa de entrada, pelo menos 20 newsletters diferentes. Nenhuma delas diz nada, até porque ninguém sabe nada. Mas até amanhã já terei recebido mais 20 sobre o assunto. As pessoas clicarão nas 20, e não clicarão em nenhuma que queira falar sobre outro assunto, ainda que mais relevante do que essa conversinha de história de espionagem de quem fez o que, por que e quem vi fazer o que agora.
Todas dizem as mesmas coisas, e, mais importante, também deixam de dizer as mesmas coisas.
Embora pareça ser um chute bem informado, quase todos concordam que a demissão aconteceu porque o conselho da OpenAI tem uma visão mais conservadora sobre a velocidade de desenvolvimento das ferramentas, mais focada nos impactos desse desenvolvimento do que na velocidade.
A cobertura, porém, universalmente ignora a questão para se focar na guerra política entre Altman e o conselho. Pouco importa o que cada lado propõe, o que vale é saber quem vai ganhar a disputa.
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O professor de jornalismo da New York University Jay Rosen vem insistindo há algum tempo em um ponto parecido com esse sobre a cobertura eleitoral americana. A frase que ele popularizou é: not the odds, but the stakes. Não interessa ao jornalismo a probabilidade de alguém ganhar ou não, o que importa são as consequências da vitória de um ou de outro. Pouco importa se Trump pode ganhar em Ohio ou não, o que importa é o que ele vai fazer se ganhar.
Não deveria ser diferente na cobertura deste caso. O que importa não é se Altman vai “ganhar” a queda de braço com o conselho da empresa ou não, mas sim o que vai acontecer se ele ganhar. A OpenAI estava atropelando protocolos éticos para entregar seus produtos mais rápido na tentativa de se tornar dominante no mercado?
Estava de fato levando em consideração os impactos globais de seus desenvolvimentos antes de colocá-los à disposição do público? E se sair da empresa e for para a Microsoft, que é o quadro que se configura no momento em que escrevo, quais são os impactos disso para o mercado e para a sociedade? O que se lê, porém, não é isso, mas sim uma mistura de fofoca com história de detetive sobre quem está ao lado do ex-CEO ou não.
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Mitos são necessariamente idealizantes. Ninguém é na vida real tão bom quanto um mito, e poucos (Steve Jobs? Bill Gates?) chegam perto de ser tão importantes para suas empresas quanto dizem os mitos. Se te faz pensar: o atual ex-CEO, além da OpenAI, fundou um negócio de criptomoedas. Não é um dos criadores da tecnologia, e não parece ser especialmente importante para o seu desenvolvimento.
A história que brota da cobertura de sua saída da OpenAI, porém, dá a entender que sem ele a empresa acaba, mas ele vai ser feliz e rico em outro lugar. É o que os americanos chamam de “self-fulfilling prophecy”: se todo mundo diz isso, obviamente, a equipe da OpenAI tende a pensar o mesmo, e acompanhar Altman, que ganha a boa vontade do mundo – especificamente da Microsoft – para ocupar um cargo em que não vão faltar nem dinheiro nem recursos para continuar o desenvolvimento de projetos de inteligência artificial.
Seria um problema apenas das empresas e seus acionistas se os “stakes”, as consequências, não fossem tão importantes. Já perdemos o bonde da luta contra as mudanças climáticas, e agora temos que nos contentar com, na melhor das hipóteses, diminuir os prejuízos.
No caso do desenvolvimento da inteligência artificial generativa, ainda há tempo para pensar nas consequências, embora provavelmente não muito tempo. Se continuarmos nos focando no aspecto “Caras” da questão, porém, vamos de novo ter que pensar só em como mitigar os danos.