Produzido em larga escala no Brasil e um dos pontos importantes no que tange a transição energética nos transportes, o etanol de cana-de-açúcar está à frente de combustíveis fósseis por ser renovável e reduzir as emissões de CO₂ em até 90% ante a gasolina.
Contudo, nem tudo são flores. Estudo do professor Marcelo Sant’Anna, da Faculdade Getúlio Vargas (FGV), aponta que é preciso observar a sustentabilidade efetiva a partir de certos fatores, como o adequado uso do solo.
No artigo “How green is sugarcane ethanol?” (“Quão verde é o etanol de cana-de-açúcar?”, em tradução livre), publicado este ano, ele indica que 92% do aumento da produção do etanol de cana brasileiro poderá ser realizada com a expansão da área plantada, sendo os 8% restantes do aumento de produtividade de áreas já utilizadas.
“Estima-se que o aumento da demanda do etanol de cana-de-açúcar pode causar a expansão de terras para esse fim, caso não existam políticas públicas e práticas empresariais robustas para a sustentabilidade”, afirma o pesquisador.
Apesar de o etanol ter pegada de carbono inferior à dos combustíveis fósseis, existem cenários nos quais a produção pode ser mais poluente, principalmente quando há desmatamento significativo para expandir as plantações, o que libera muito CO₂ armazenado nas florestas.
“Por exemplo, a produção de etanol nos Estados Unidos (essencialmente derivado do milho) não cumpriu as metas de emissões de gases de efeito estufa da própria política no país. E houve impactos negativos na qualidade da água, na área de terra usada para conservação e outros processos do ecossistema. Um estudo americano indica uma pegada de carbono 24% maior do etanol em relação à gasolina. Portanto, a sustentabilidade do etanol depende de práticas agrícolas responsáveis e do uso de tecnologias que minimizem a necessidade de novas áreas de plantio”, diz Henrique Pereira, COO da WayCarbon, empresa de soluções voltadas à transição net-zero, ao UOL.
Por sua vez, o estudo de Sant’Anna aponta que, se as boas práticas não forem seguidas, 75% da expansão brasileira se dará em áreas hoje utilizadas pela pecuária e outras culturas agrícolas.
“Por questões puramente econômicas, a cana-de-açúcar pode substituir esses espaços e, novas áreas, como a Amazônia, serem desmatadas para a pecuária, por exemplo. É um efeito indireto que precisa ser analisado”, continua o pesquisador. Do total de novas áreas plantadas, estima-se que 19% seriam decorrentes de desflorestamentos.
A conversão da vegetação nativa para área de cultivo pode trazer perda de biomassa por hectare e, assim, ocasiona perda de estoque de carbono, como explica Pereira. “O etanol produzido em regiões recém desmatadas carrega consigo um impacto climático significativamente superior ao etanol produzido onde a atividade agrícola já é consolidada de longa data, como no interior paulista.”
Segundo pesquisa realizada por Agroicone, Unicamp e Embrapa Meio Ambiente e citada por Pereira, ao longo dos últimos 20 anos de cultivo de cana no Brasil, houve avanço sobre áreas nativas em 1,6% do total somente.
“Ou seja, se tivermos de fato uma situação em que 19% das novas áreas destinadas ao etanol sejam oriundas de desmatamento, estaremos aumentando a pegada ecológica e a pegada de carbono média do etanol brasileiro, prejudicando a própria credibilidade da cadeia sucroalcooleira como alternativa sustentável aos combustíveis fósseis”, explica o COO da WayCarbon.
Para André Valente, diretor de sustentabilidade da Raízen, o estudo de Sant’Anna provoca debate. “Contudo, quando olhamos para os dados de áreas que anteriormente eram pastagens, encontramos espaços majoritariamente degradados que foram recuperados. Além disso, nos últimos 20 anos, a cana capturou aproximadamente 200 milhões de toneladas de CO₂ equivalente, isto é, algo como plantar 1,4 milhão de árvores, ou 80 áreas do tamanho da cidade de Paris”, afirma.
Já Sant’Anna diz, ao UOL, pode haver cenário de incentivos fiscais e políticas de preço para que fazendeiros e indústrias tenham interesse em expandir a produção intensiva na mesma área onde já estão.
A Raízen, por exemplo, que produz e distribui etanol, visa o maior aproveitamento possível da cana. “A cana-de-açúcar pode fazer mais de dez produtos. E, se houver necessidade de aumento de área plantada para isto, será preciso respeitar políticas públicas que exigem sustentabilidade e estão cada vez mais rigorosas”, pontua Valente.
Hoje, a empresa usa não somente o caldo para produzir o etanol, como, também, o bagaço para o denominado etanol de segunda geração, biocombustível feito a partir de resíduos da fabricação do etanol.
Basicamente, trata-se da mesma composição química e uso do etanol de primeira geração, porém, com aumento de produtividade em 50% sem aumento de área plantada, além de pegada de carbono 30% inferior.
Eles também usam a vinhaça e a torta da cana no campo como fertilizantes. “Extraímos, assim, mais possibilidade de descarbonização, desenvolvimento de biometano, entre outras práticas”, explica o diretor de sustentabilidade da companhia.
Outra questão é o tempo necessário para que a substituição dos combustíveis fósseis por etanol de cana compense emissões de carbono oriundas do desmatamento inicial. O estudo do professor estima serem necessários cerca de 20 anos para que tal compensação seja alcançada, ou seja, bem menos do que os 167 anos estimados para o etanol de milho.
Etanol de cana é bom ou ruim?
- Etanol de cana é bom ou ruim? Depende de como será o uso do solo e a produtividade para o crescimento da demanda;
- “Do ponto de vista ambiental, sabe-se que o etanol é menos emissor do que os combustíveis fósseis, mas, com o aumento da demanda, o etanol será bom se não colaborar com o aumento do desmatamento e consequências nocivas para a biodiversidade. Além disso, pode ser um caminho importante na transição energética”, diz o professor da FGV;
- Hoje, mais de 85% do etanol vendido no Brasil é certificado pelo RenovaBio, garantindo a rastreabilidade da cadeia e ausência de desmatamento direto e indireto;
- Assim, trata-se também de questão de negócio, de modo que companhias e fazendeiros sigam as diretrizes para operar;
- No Brasil, o etanol de cana também tem vantagem em relação, por exemplo, ao crescimento da demanda dos veículos elétricos por não serem necessárias mudanças no processo produtivo e de abastecimento ante combustíveis fósseis;
- “À medida que as frotas sejam eletrificadas ou passem a usar novos combustíveis, como o hidrogênio verde, o etanol segue com papel importante no processo de transição para o fim do uso de fósseis, mas, novamente, desde que políticas mitiguem a expansão agrícola indevida”, salienta Sant’Anna.
A produção de biocombustíveis no Brasil atingiu recorde em 2023. Juntos, etanol e biodiesel somaram quase 43 bilhões de litros produzidos, segundo a Agência Nacional do Petróleo, Gás e Biocombustíveis (ANP).
O etanol registrou aumento de 15,5%, sendo mais de 35 bilhões de litros produzidos. O etanol hidratado cresceu 16%, enquanto o etanol anidro, misturado à gasolina, aumentou 13,5%. Em 2023, as vendas de gasolina e etanol subiram 6,2%, para 62,2 bilhões de litros.
Isto se deve, por exemplo, às práticas de subsídios tributários ao derivado do petróleo, o que deixa a gasolina competitiva no mercado. O etanol, por sua vez, é considerado vantajoso para o motorista quando custa menos de 70% do preço da gasolina.
Valente opina que combustíveis menos emissores do que os fósseis são a chave para a descarbonização, mas se utilizados coexistentemente. “Enquanto a frota elétrica faz sentido para pequenas distâncias e o hidrogênio verde está em fase de desenvolvimento, o etanol segue como combustível versátil que pode atuar com outras opções de biocombustíveis”, finaliza.