Desde sempre, o mel esteve presente na cultura alimentar brasileira. Muito antes da chegada dos colonizadores, estava presente no cotidiano dos povos nativos. Era o que deixava tudo mais doce em uma época em que o açúcar vindo da cana passava bem longe da dieta natural dos indígenas.
Desde os relatos do jesuíta Fernão Cardim, em 1585, tem-se notícias da biodiversidade de abelhas nativas e da abundância de mel na alimentação original brasileira. Em várias etnias, o ingrediente era tomado puro, como gulodice. Aparecia também nas bebidas fermentadas, misturadas à raízes e frutas.
Com a mandioca, faziam aipij, caracu, caxiri, tikira e a mais conhecida de todas, caium. Com o milho, abatií e aluá. Com caju, acaijba. Em “Memorável Viagem Marítima e Terrestre ao Brasil” (1682), o pesquisador neerlandês Johan Nieuhof escreveu: “Com mel, pode-se preparar licor sem levá-lo ao fogo, apenas misturando-o com água da fonte e deixando-o ao relento.”
A relação das abelhas com os humanos começa lá na pré-história, quando homens caçavam e coletavam frutos, sementes, ovos e mel diretamente na natureza. O mel é um alimento milenar. É o adoçante mais antigo da humanidade e aparece em diversos relatos bíblicos. Junto com o trigo, as oliveiras e o vinho, é uma das bases da civilização cristã ocidental.
No Antigo Testamento, o ingrediente é citado como sinônimo de abundância e da Terra Prometida. Na Roma Antiga, o mel era um dos condimentos mais importantes, sendo usados em temperos diversos e na preparação de bolos de especiarias e como um conservante natural dos alimentos. O mel também faz parte das tradições gastronômicas judaicas, sendo consumido no Rosh Hashaná, o Ano Novo dos judeus.
Na América, os Astecas comiam mel num preparado chamado atole, uma pasta de milho, mel e água quente. Mas nem todo mel é igual. Só para se ter uma ideia, são mais de 20 mil espécies no mundo.
Aqui no Brasil, temos 244 tipos de abelhas nativas, sem ferrão, catalogadas e espalhadas de Norte a Sul. Isso representa a metade das espécies sem ferrão encontradas em todo o planeta. O que resulta em uma variedade de sabores incontável. “Ao redor do mundo, temos o mel convencional, das abelhas com ferrão, que variam de acordo com as flores. Por aqui, isso se multiplica, porque além das floradas, ainda temos as características das espécies”, diz o ecólogo e mestre em gerenciamento ambiental Jerônimo Villas-Bôas, cofundador da Reenvolver, empresa de atuação social que tem como missão fortalecer cadeias de valor de produtos dA socio biodiversidade. Além disso, assina junto com Alex Atála, Fabio Menna e Janaina Fidalgo, o livro 67 Receitas com mel de abelhas nativas, do Instituto Atá, que reúne preparações de 49 cozinheiros com o produto.
“O mel convencional das abelhas europeias e africanas é viscoso, tem alta concentração de açúcar e é conhecido por não estragar. Já as abelhas que estão nos trópicos desenvolveram um método diferente, que é a fermentação, o que acaba trazendo ainda mais características particulares, com mais acidez e aroma.” Para Jerônimo, a chegada de diversos meles na alta gastronomia brasileira é o resultado de um trabalho que vem acontecendo na última década. “Hoje temos pelo menos uma dúzia de empresas regulamentadas que conseguem colocar esse produto no mercado”, afirma.
Uma grande virada aconteceu quando, em 2017, foi aprovado o Regulamento Técnico de Identidade e Padrão do mel elaborado pelas abelhas da subfamília Meliponinae (Hymenoptera, Apidae), conhecidas por Abelhas sem Ferrão-ASF e os requisitos de processamento e segurança alimentar para seu consumo humano direto.
Sendo assim, o que antes era restrito ao consumo pessoal e comercialização informal, pode ser rotulado como um negócio, capaz de manter a regularidade na entrega de produtos, inclusive para os restaurantes.
A grande coroação do mel na alta gastronomia
E o mel das abelhas nativas foram parar nos grandes restaurantes. Ele está no menu do Evvai e no Tuju, ambos duas estrelas Michelin. Localizadas em São Paulo, as casas têm em comum também a valorização de ingredientes brasileiros. Katherina Cordás, diretora do Tuju Pesquisas, conta que os meles aparecem em diversos momentos. O ápice é o final do menu degustação, quando os meles servem de acompanhamento para a tábua de queijos. “É uma boa oportunidade para apresentar aos clientes a enorme diversidade de meles que existem no Brasil. Somos o país com mais espécies de abelhas no mundo, o que torna o mel um enorme representante da nossa biodiversidade”, diz Katherina. Atualmente, o Tuju utiliza doze diferentes meles, além de alguns tipos de pólen, como o da jataí. A ideia é ter perfis para serem usados em preparações distintas, como por exemplo, no gaspacho de acerola e no coquetel Perrillada. Estão ainda espalhadas algumas caixinhas de abelha sem ferrão pelo restaurante. “O mel de abelhas nativas imprime de maneira expressiva – assim como os queijos, vinhos e charcutaria – microorganismos de seus arredores”, explica a pesquisadora gastronômica. “E traz à tona características do solo, do clima, da vegetação… Um mel produzido pela mesma abelham pode ter características distintas, dependendo do local onde foi feito. Isso torna um produto único e especial”, completa Katherina.
Os guardiões
Há quase duas décadas, as abelhas nativas conquistaram o coração do casal Benedito Antonio Uczai e Salete Perin. Depois de participarem de um curso sobre meliponicultora, começaram a criação de abelhas nativas por hobby. O passatempo, no entanto, virou coisa séria e eles se tornaram um dos principais produtores do Paraná. Vivendo em uma pequena chácara em Mandirituba, começaram com uma única colmeia, da espécie mirim-guaçu. “Tínhamos uma pequena indústria de sucos, vinhos e geleias. Cuidar das abelhas era uma atividade relaxante, que nos dedicávamos aos domingos”, diz Salete.
Hoje, são centenas de colmeias espalhadas pela propriedade e em sítios de parceiros. Toda a produção é vendida pela marca Abelha Brasil. Na chácara, vivem quatorze espécies de abelhas endêmicas, próprias da região, mas comercialmente são vendidos cinco tipos de meles. “Tiramos duas espécies da extinção, a mandaçaia e a guaraipo. Há 14 anos, trabalhamos também com a mirim saiqui”, diz Benedito. Entre as que fazem festa nos jardins da chácara, estão as tubunas, manduri, jataí e guaraipo. “Os indígenas as batizaram de acordo com suas características e comportamento”, completa o produtor, que atende grandes chefs como Manu Buffara, do Manu, e Onildo Rocha, do Notiê e Claudia Krauspenhar, do K.sa.
Até 1838, as abelhas nativas sem ferrão eras as únicas polinizadoras e produtoras de mel e própolis no Brasil. Isso mudou com a chegada das abelhas europeias e, mais tarde, com as africanas. Desde então, o mercado priorizou essas espécies diante das abelhas endêmicas. “Elas produzem uma quantidade muito superior de mel”, explica Benedito. Cada família de manduri é composta, em média, por 300 indivíduos, já uma colmeia de comuns, com ferrão, e de 80 mil insetos, que chegam a produzir até 50 quilos de mel por ano. “As nativas são pequenas e com populações reduzidas, que armazenam seus meles em potes. Por isso, o produto é mais caro, vendido normalmente em gramas”, completa Benedito.
Um pote de 30 ml de mel de jataí pode ser encontrado no mercado pelo valor de 39,90 reais, o que dá 1.330 reais, o litro. Já o da mandaçaia custa R$ 1.460. Mais do que o bálsamo natural que produzem, as abelhas são essenciais para a polinização e, consequentemente, para o equilíbrio da flora e da fauna. As nativas têm a difícil tarefa de manter a biodiversidade dos biomas brasileiros.
Afinal, diferentemente das abelhas comuns, que se alimentam de qualquer coisa que contenha açúcar, inclusive restos de comida, as indígenas buscam alimentos somente em flores e frutas de árvores nativas. O futuro do planeta passa por esses serem pequeninos e mágicos, que deixam o mundo muito mais doce.
Alguns tipos de mel
- Mel de Jataí: doçura média/alta, muito conhecido na região sul e sudeste do Brasil.
- Mel de Mandaçaia: Baixa doçura e alta fermentação. Pode apresentar características de abacaxi.
- Mel de Guaraipo: Possui alta fermentação que traduz em excelente complexidade.
- Mel de Manduri: Alta doçura, muito aromático, com corpo médio e baixa fermentação, remete ao gosto de uva verde.
Pelo mundo
Um dos meles mais caros do mundo: o de sidr (ou cedro), feito na ArábiaSaudita e no Iêmen. O mel, um dos mais doces do planeta, é proveniente de abelhas que se alimentam das flores de cedro, exclusivos da região. Além disso, o curto período de sua produção o torna ainda mais raro. Outro mel internacionalmente conhecido é o de himeto, gerado há mais de três mil anos na Grécia. O produto tem tons amarronzados e maior densidade do que os meles em geral.