quinta-feira, novembro 21, 2024
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Mel de abelha nativa: uma joia gastronômica brasileira

Desde sempre, o mel esteve presente na cultura alimentar brasileira. Muito antes da chegada dos colonizadores, estava presente no cotidiano dos povos nativos. Era o que deixava tudo mais doce em uma época em que o açúcar vindo da cana passava bem longe da dieta natural dos indígenas.

Desde os relatos do jesuíta Fernão Cardim, em 1585, tem-se notícias da biodiversidade de abelhas nativas e da abundância de mel na alimentação original brasileira. Em várias etnias, o ingrediente era tomado puro, como gulodice. Aparecia também nas bebidas fermentadas, misturadas à raízes e frutas.


Diferente das abelhas europeias e africanas, as abelhas nativas e sem ferrão vivem em pequenas comunidades
Diferente das abelhas europeias e africanas, as abelhas nativas e sem ferrão vivem em pequenas comunidades • Carol Daher

Com a mandioca, faziam aipij, caracu, caxiri, tikira e a mais conhecida de todas, caium. Com o milho, abatií e aluá. Com caju, acaijba. Em “Memorável Viagem Marítima e Terrestre ao Brasil” (1682), o pesquisador neerlandês Johan Nieuhof escreveu: “Com mel, pode-se preparar licor sem levá-lo ao fogo, apenas misturando-o com água da fonte e deixando-o ao relento.”

A relação das abelhas com os humanos começa lá na pré-história, quando homens caçavam e coletavam frutos, sementes, ovos e mel diretamente na natureza. O mel é um alimento milenar. É o adoçante mais antigo da humanidade e aparece em diversos relatos bíblicos. Junto com o trigo, as oliveiras e o vinho, é uma das bases da civilização cristã ocidental.

No Antigo Testamento, o ingrediente é citado como sinônimo de abundância e da Terra Prometida. Na Roma Antiga, o mel era um dos condimentos mais importantes, sendo usados em temperos diversos e na preparação de bolos de especiarias e como um conservante natural dos alimentos. O mel também faz parte das tradições gastronômicas judaicas, sendo consumido no Rosh Hashaná, o Ano Novo dos judeus.

Na América, os Astecas comiam mel num preparado chamado atole, uma pasta de milho, mel e água quente. Mas nem todo mel é igual. Só para se ter uma ideia, são mais de 20 mil espécies no mundo.

Aqui no Brasil, temos 244 tipos de abelhas nativas, sem ferrão, catalogadas e espalhadas de Norte a Sul. Isso representa a metade das espécies sem ferrão encontradas em todo o planeta. O que resulta em uma variedade de sabores incontável. “Ao redor do mundo, temos o mel convencional, das abelhas com ferrão, que variam de acordo com as flores. Por aqui, isso se multiplica, porque além das floradas, ainda temos as características das espécies”, diz o ecólogo e mestre em gerenciamento ambiental Jerônimo Villas-Bôas, cofundador da Reenvolver, empresa de atuação social que tem como missão fortalecer cadeias de valor de produtos dA socio biodiversidade. Além disso, assina junto com Alex Atála, Fabio Menna e Janaina Fidalgo, o livro 67 Receitas com mel de abelhas nativas, do Instituto Atá, que reúne preparações de 49 cozinheiros com o produto.

“O mel convencional das abelhas europeias e africanas é viscoso, tem alta concentração de açúcar e é conhecido por não estragar. Já as abelhas que estão nos trópicos desenvolveram um método diferente, que é a fermentação, o que acaba trazendo ainda mais características particulares, com mais acidez e aroma.” Para Jerônimo, a chegada de diversos meles na alta gastronomia brasileira é o resultado de um trabalho que vem acontecendo na última década. “Hoje temos pelo menos uma dúzia de empresas regulamentadas que conseguem colocar esse produto no mercado”, afirma.


A espécie manduri tem cerca de 300 indivíduos, enquanto a comum reúne mais de 80 mil
A espécie manduri tem cerca de 300 indivíduos, enquanto a comum reúne mais de 80 mil • Carol Daher

Uma grande virada aconteceu quando, em 2017, foi aprovado o Regulamento Técnico de Identidade e Padrão do mel elaborado pelas abelhas da subfamília Meliponinae (Hymenoptera, Apidae), conhecidas por Abelhas sem Ferrão-ASF e os requisitos de processamento e segurança alimentar para seu consumo humano direto.

Sendo assim, o que antes era restrito ao consumo pessoal e comercialização informal, pode ser rotulado como um negócio, capaz de manter a regularidade na entrega de produtos, inclusive para os restaurantes.

A grande coroação do mel na alta gastronomia


Degustação de diferentes tipos de mel do Evvai
Degustação de diferentes tipos de méis no Evvai • Tina Bini

E o mel das abelhas nativas foram parar nos grandes restaurantes. Ele está no menu do Evvai e no Tuju, ambos duas estrelas Michelin. Localizadas em São Paulo, as casas têm em comum também a valorização de ingredientes brasileiros. Katherina Cordás, diretora do Tuju Pesquisas, conta que os meles aparecem em diversos momentos. O ápice é o final do menu degustação, quando os meles servem de acompanhamento para a tábua de queijos. “É uma boa oportunidade para apresentar aos clientes a enorme diversidade de meles que existem no Brasil. Somos o país com mais espécies de abelhas no mundo, o que torna o mel um enorme representante da nossa biodiversidade”, diz Katherina. Atualmente, o Tuju utiliza doze diferentes meles, além de alguns tipos de pólen, como o da jataí. A ideia é ter perfis para serem usados em preparações distintas, como por exemplo, no gaspacho de acerola e no coquetel Perrillada. Estão ainda espalhadas algumas caixinhas de abelha sem ferrão pelo restaurante. “O mel de abelhas nativas imprime de maneira expressiva – assim como os queijos, vinhos e charcutaria – microorganismos de seus arredores”, explica a pesquisadora gastronômica. “E traz à tona características do solo, do clima, da vegetação… Um mel produzido pela mesma abelham pode ter características distintas, dependendo do local onde foi feito. Isso torna um produto único e especial”, completa Katherina.

Os guardiões


As abelhas nativas, também conhecidas como indígenas ou melipolíneos, não têm ferrão e armazenam o mel em pequenos potes de cera
As abelhas nativas, também conhecidas como indígenas ou melipolíneos, não têm ferrão e armazenam o mel em pequenos potes de cera • Carol Daher

Há quase duas décadas, as abelhas nativas conquistaram o coração do casal Benedito Antonio Uczai e Salete Perin. Depois de participarem de um curso sobre meliponicultora, começaram a criação de abelhas nativas por hobby. O passatempo, no entanto, virou coisa séria e eles se tornaram um dos principais produtores do Paraná. Vivendo em uma pequena chácara em Mandirituba, começaram com uma única colmeia, da espécie mirim-guaçu. “Tínhamos uma pequena indústria de sucos, vinhos e geleias. Cuidar das abelhas era uma atividade relaxante, que nos dedicávamos aos domingos”, diz Salete.

Hoje, são centenas de colmeias espalhadas pela propriedade e em sítios de parceiros. Toda a produção é vendida pela marca Abelha Brasil. Na chácara, vivem quatorze espécies de abelhas endêmicas, próprias da região, mas comercialmente são vendidos cinco tipos de meles. “Tiramos duas espécies da extinção, a mandaçaia e a guaraipo. Há 14 anos, trabalhamos também com a mirim saiqui”, diz Benedito. Entre as que fazem festa nos jardins da chácara, estão as tubunas, manduri, jataí e guaraipo. “Os indígenas as batizaram de acordo com suas características e comportamento”, completa o produtor, que atende grandes chefs como Manu Buffara, do Manu, e Onildo Rocha, do Notiê e Claudia Krauspenhar, do K.sa.

Até 1838, as abelhas nativas sem ferrão eras as únicas polinizadoras e produtoras de mel e própolis no Brasil. Isso mudou com a chegada das abelhas europeias e, mais tarde, com as africanas. Desde então, o mercado priorizou essas espécies diante das abelhas endêmicas. “Elas produzem uma quantidade muito superior de mel”, explica Benedito. Cada família de manduri é composta, em média, por 300 indivíduos, já uma colmeia de comuns, com ferrão, e de 80 mil insetos, que chegam a produzir até 50 quilos de mel por ano. “As nativas são pequenas e com populações reduzidas, que armazenam seus meles em potes. Por isso, o produto é mais caro, vendido normalmente em gramas”, completa Benedito.

Um pote de 30 ml de mel de jataí pode ser encontrado no mercado pelo valor de 39,90 reais, o que dá 1.330 reais, o litro. Já o da mandaçaia custa R$ 1.460. Mais do que o bálsamo natural que produzem, as abelhas são essenciais para a polinização e, consequentemente, para o equilíbrio da flora e da fauna. As nativas têm a difícil tarefa de manter a biodiversidade dos biomas brasileiros.

Afinal, diferentemente das abelhas comuns, que se alimentam de qualquer coisa que contenha açúcar, inclusive restos de comida, as indígenas buscam alimentos somente em flores e frutas de árvores nativas. O futuro do planeta passa por esses serem pequeninos e mágicos, que deixam o mundo muito mais doce.

Alguns tipos de mel

  • Mel de Jataí: doçura média/alta, muito conhecido na região sul e sudeste do Brasil.
  •  Mel de Mandaçaia: Baixa doçura e alta fermentação. Pode apresentar características de abacaxi.
  • Mel de Guaraipo: Possui alta fermentação que traduz em excelente complexidade.
  •  Mel de Manduri: Alta doçura, muito aromático, com corpo médio e baixa fermentação, remete ao gosto de uva verde.

Pelo mundo

Um dos meles mais caros do mundo: o de sidr (ou cedro), feito na ArábiaSaudita e no Iêmen. O mel, um dos mais doces do planeta, é proveniente de abelhas que se alimentam das flores de cedro, exclusivos da região. Além disso, o curto período de sua produção o torna ainda mais raro. Outro mel internacionalmente conhecido é o de himeto, gerado há mais de três mil anos na Grécia. O produto tem tons amarronzados e maior densidade do que os meles em geral.

Via CNN

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