domingo, novembro 17, 2024
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‘Matando bezerros de ouro num churrasco de família’

Deve ser muito triste e ansiosa a vida de militantes. Na semana passada, testemunhei um debate interessante em um churrasco: de um lado, tínhamos um bolsonarista e, do outro, um lulista. Até aí, normal; esses são espécimes muito comuns em churrascos de família nos dias atuais. É mais fácil achar esses dois nesse ambiente do que nossas queridas capivaras nos biomas do interior paulista. Confesso que, quando um debate desse se inicia, fico completamente absorto na análise da mentalidade de ambos os gladiadores de políticos de estimação. Geralmente, ao fim dessas pérolas, fica a impressão de que tanto Lula quanto Bolsonaro são seres inerrantes, divinizados, pessoas que gostaríamos de ter como pais ou intercessores no céu. Todo defeito, ou possível defeito, na língua de seus apoiadores se esvanece, dando lugar a virtudes heroicas tão grandiosas que fariam Carlos Magno e Winston Churchill pedirem “benção” ajoelhados aos pés desses dois. Como é bizarra a mente de um militante.

E, calma, não vou me vender aqui como o psicanalista do rolê, o virtuoso supremo que está acima da carne seca. Mas confesso que busco incessantemente ter sempre clareza intelectual, equilíbrio emocional e, principalmente, autonomia opinativa em tudo que consumo. Falho, muitas vezes, em manter tal clareza, equilíbrio e autonomia, mas é fato que tento sempre mantê-las em minhas ações e julgamentos. O que me assusta atualmente é que, no geral, as pessoas não parecem sequer estar tentando ter e nutrir tais atributos. A história da razão humana, ou melhor, do amadurecimento da razão humana na história, passa necessariamente pela clareza intelectual, pelo controle emocional e pela liberdade de opinião. Se abandonamos esse tripé, tornamo-nos humanos mentalmente amputados, aqueles que usam da razão como instrumento menor, feito para tarefas rasas, e não como motor de esclarecimento e julgamento da realidade.

Caí na tentação de sair da mera análise e opinar naquele embate — a culpa foi da cerveja. Disse que, de longe, achava Bolsonaro um melhor político que Lula, com princípios que se assemelhavam muito mais aos meus, e que, por isso, não negaria minha preferência por ele. Sou cético e crítico, sim — mas, isentão, jamais. Aliás, uma das funções sensacionais da razão é julgar por meio de um quadro de gradação. Afinal, não há pessoas perfeitas e nem exige-se santidade como pré-requisito para bons estadistas, mas, há, sim, pessoas muito ruins, piores, e saber reconhecer as personas é uma virtude real, aquilo que Russell Kirk chamava de “política do possível”.

Nunca neguei que tinha, sim, críticas ao ex-presidente, à sua completa falta de estratégia comunicativa, o que, muitas vezes, atrapalhou sua popularidade e seu governo, bem como o natural e importantíssimo trabalho de convencimento de pessoas críticas às suas ideias e posturas no Congresso. Citei, então, o caso da sua desastrosa e pitoresca aparição em TV aberta, no início da crise da covid, para salientar seu “histórico de atleta”, bem como quase desdenhar da gravidade daquela doença pandêmica. E, aproveitando o embalo, emendei logo uma terceira crítica, dizendo que o erro político mais sério de Bolsonaro e sua equipe de ministros era ter deixado a reforma tributária no colo do PT, a reforma mais urgente e importante em décadas para o Brasil, pois, no furor de combater a esquerda nas redes e se deixar pautar pelas provocações do mainstream e do STF, Bolsonaro fez do final de seu governo uma espécie de altercação de sanatório.

Lula diz que fome é 'irresponsabilidade' de quem governa
As declarações ocorreram durante o evento do Dia da Alimentação, no Palácio do Planalto | Foto: Divulgação/Agência Brasil

De Lula, eu disse o de praxe; além de seu histórico pouco ilibado no quesito “ética pública”, além dos defeitos graves de valores — uso termos brandos para evitar processos no STF. Julgo sinceramente que, no fundo, ele representa tudo aquilo que todo bom homem recusaria desde o berço apoiar em um nível público. A falta de sincronia entre seu discurso ideológico e sua prática de poder não é um defeito exclusivo do presidente; todavia, é verdade que ele consegue ampliar com rara argúcia tal dissonância. Disse, também, ao fim da minha exposição, já com um pedaço de linguiça na boca, que Lula é a personificação de tudo que jamais apoiarei, o espectro encarnado do socialismo hipócrita latino-americano.

Os bezerros de ouro

Como visto, critiquei ambos os deuses naquele tom típico de churrasco familiar animado por desavenças políticas. E, após ter desagradado aos debatedores, ficou nítido que eles já estavam cegamente convictos da pureza política de seus bezerros de ouro, não importando o que eu dissesse. Fui buscar outra cerveja. A militância, que, na minha opinião, é um eufemismo para “cegueira política consentida”, não deveria jamais substituir a crítica sincera, seja de quem for. O fato de alguém ter votado em Bolsonaro ou em Lula, em mentes sãs, não substituiria de forma alguma a tarefa elementar de manter uma distância moral de julgamento dessas personas políticas. Em A Mente Moralista, de Jonathan Haidt, o autor sublinha que essa cegueira política anula nos homens certas regras comuns de convívio, mas, pior, afeta a percepção mesma da realidade; o óbvio mal é maquiado até se tornar um bem aceitável ou tolerável.

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Jair Bolsonaro encontra-se inelegível por causa das condenações relacionadas à sua atuação durante a pandemia de covid-19 | Foto: Valter Campanato/Agência Brasil

Como disse há três colunas atrás, sou um convicto conservador, mas me afasto da militância politiqueira tal como o diabo da cruz, independentemente de ser de direita ou de esquerda. Gosto profundamente da minha liberdade de criticar, de pensar sem amarras. Definitivamente, não sou dado a vender minha liberdade de opinião e de crítica por um apoio cego a quem quer que seja, pois acredito que o único bezerro que merece ser defendido com tal furor num churrasco é aquele mal passado, servido com uma boa cerveja puro malte.

Via Revista Oeste

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