Em 1947, Aleppo, no norte da Síria, era um cenário de contrastes. A cidade era rica em história e cultura. Mas, em meio à convivência nas ruas estreitas, guardava tensões políticas e sociais que explodiriam no final daquele ano, com o anúncio da partilha da Palestina. E, meses depois, a criação do Estado de Israel.
Na madrugada de 30 de novembro, no dia seguinte à partilha definida na Organização das Nações Unidas (ONU), o que deveria ser um momento de celebração internacional se transformou em um pesadelo para a comunidade judaica local.
Muitos saíram às ruas de Aleppo, com o ingênuo desejo de comemorar o direito de o povo judeu, ainda que partilhado com os árabes, ter um espaço para viver. Os árabes, no entanto, não aceitaram e uma guerra irrompeu a partir desta decisão da ONU.
Ezra Harari era um menino de apenas dez meses. Ele mal sabia que o mundo ao seu redor estava prestes a mudar para sempre. Memórias do ocorrido ele não tem. Mas, pelo relato dos seus pais, a imagem que ficou na mente foi a dos gritos e do caos, das ruas tomadas por uma multidão enfurecida.
Logo depois da resolução da ONU sobre a partilha, esta multidão iniciou um pogrom (ataques da população a cidadãos e locais da comunidade judaica). As famílias judaicas foram obrigadas a fugir, de forma clandestina, do país.
A história da família de Ezra, desde Aleppo, é uma das milhares sobre judeus que tiveram de deixar tudo o que tinham: casa, pertences, sonhos. Para serem arrancados dos países onde moravam. Países estes que contavam com uma presença milenar desta comunidade.
Trata-se de um capítulo pouco conhecido da história judaica: a expulsão de aproximadamente 950 mil judeus dos países árabes no contexto da criação do Estado de Israel.
Para dar visibilidade a essa passagem traumática e aos refugiados judeus que reconstruíram suas vidas ao redor do mundo, o documentário Laissez-Passer – A Expulsão dos Judeus dos Países Árabes foi lançado nesta quinta-feira, 20, na Sinagoga Mishcan Menachem, em São Paulo.
O evento foi inserido na série de homenagens ao dia 18 de março, Dia da Memória da Imigração Judaica ao Brasil, estabelecido por meio de projeto do deputado federal Marcelo Itagiba (PMDB-RJ).
O evento contou com a presença do diretor Marcio Pitliuk e do pesquisador Eduardo Cohen, filho de Becky Cohen que, em 1958, aos 15 anos, foi expulsa com a família do Egito, dois anos depois da Guerra de Suez.
O conflito envolveu Israel, Egito, França e Inglaterra, pelo desbloqueio do estreito de Tiran, ordenado pelo ditador egípcio Gamal Abdel-Nasser.
Eles imigraram para o Brasil, onde enfrentaram dificuldades, mas conseguiram se estabelecer. “A diferença entre o Egito e a Síria é que, no Egito, os judeus foram expulsos de forma explícita”, conta Ezra a Oeste. “Na Síria, a expulsão se deu de outra maneira, por meio de fuga, já que o governo não os deixava sair e a população estava sendo atacada.”
O documentário mostra como a limpeza étnica de fato provocou a saída integral dos judeus dos países árabes. As acusações sobre as ações de Israel em Gaza, depois dos atques de 7 de outubro de 2023, segundo o documentário, não refletem qualquer interesse em erradicar a população palestina. Ao contrário das intenções dos ditadores árabes em eliminar de seus países a população judaica décadas atrás.
O Egito, antes da fundação do Estado de Israel, abrigava uma comunidade judaica vibrante. Possui atualmente apenas dez famílias judias. A Síria tem menos de dez judeus. O Iraque, que chegou a ter 130 mil judeus, hoje não tem nenhum. No Marrocos, onde existia uma população expressiva, restam poucos milhares.
Para Ezra, sua experiência ainda nos primeiros anos moldou sua vida. Ele aprendeu sobre a importância da persistência, da luta e da convivência entre os povos. O Brasil sempre foi o país, segundo ele, que não tinha disfarces.
Raras vezes ocorreram, em território brasileiro, situações em que, do dia para a noite o judeu passava a ser formalmente perseguido. E percebia que, até então, a convivência que aparentava existir era enganosa.
Aleppo, para ele, teve esse caráter traiçoeiro. Revelou a mesma feição de outras cidades e países que, ao longo dos séculos, criavam armadilhas para os judeus. Assim que ele nasceu, quase ao mesmo tempo que o Estado de Israel, a cidade, onde judeus e árabes pareciam conviver, se transformou em um campo de hostilidade.
Saga da família até o Brasil
A Grande Sinagoga foi atacada, as lojas saqueadas e as casas queimadas. “Os árabes saíram com a intenção de queimar as sinagogas, destruir as casas dos judeus e expulsar nossa gente”, lembra Ezra.
Os judeus de Aleppo viviam com certa liberdade até então. Mas a situação não era fácil. Desde antes do pogrom, eles não tinham documentos e o trabalho era restrito. Já eram prisioneiros em sua própria cidade. Não podiam sair e não podiam buscar refúgio.
A Síria, sob um regime autoritário, manteve sua comunidade judaica em uma espécie de cativeiro. Shukri al-Kuwatli era o presidente eleito em 1943, que trabalhou pela independência em relação à França, em 1946.
O clima era pesado. Em 1949, a Síria passou por seu primeiro golpe militar, com a tomada do poder pelo ditador Husni al-Za’im, que era o chefe do exército.
Naqueles anos, a ideia de tentar escapar do país significava um risco de vida. A permissão para sair só foi obtida nos anos 1990, com a intervenção do presidente George Bush, o pai.
Mas a história de Ezra não parou no incêndio da sinagoga ou nas dificuldades de sua infância. Ele e seu irmão gêmeo, assim que houve o ataque, foram escondidos e enviados para o Líbano por sua família, com a ajuda de uma empregada armênia que se tornou sua guardiã.
O Líbano, para onde seus pais foram em seguida, foi um refúgio temporário. A vida para os judeus sírios ali era menos marcada por ataques diretos, mas os tempos não eram tranquilos. O medo ainda estava presente. A tensão política na região continuava a crescer, e logo a família de Ezra enfrentaria novos desafios.
Seu avô, Abraham Harari, que era líder comunitário na Síria, foi sequestrado por um grupo desconhecido ao chegar ao Líbano. A pressão política sobre os judeus na região parecia não ter fim. No entanto, graças à intervenção do governo libanês, Abraham foi libertado. “A gente tinha que viver com o medo constante de ser perseguido ou preso”, conta Ezra, refletindo sobre a vida no exílio.
Depois da fuga para o Líbano, a jornada da família Harari se estendeu para a Itália, onde Ezra estudou e se alfabetizou em italiano. Na Itália, nasceu seu irmão mais novo. Até que finalmente conseguiram um passaporte iraniano, o que possibilitou sua viagem para o Brasil, nos anos 1950. O país que receberia os judeus fugitivos da guerra se tornou, aos poucos, sua nova casa. A caçula da família nasceu no Brasil.
Ezra então construiu sua vida, com a ajuda da pequena comunidade judaica que se formava no país, composta principalmente por judeus vindos da Síria e de outras partes do Oriente Médio.

O contraste entre a Aleppo de sua infância e o Brasil, sua terra adotiva, era evidente. “Em Aleppo, o dia a dia dos judeus era até certo ponto tranquilo até aquele momento, meu pai tinha uma loja”, conta Ezra. “Mas a criação do Estado de Israel mudou tudo.”
As conversas sobre o futuro da Palestina, que se tornaram uma constante depois da partilha da ONU, trouxeram à tona sentimentos de intolerância. Culminaram na tragédia que marcou a vida de muitos judeus árabes, incluindo a sua família.
Em 1955, os Harari, assim como outras famílias judaicas sírias, chegaram ao Brasil. A adaptação foi difícil, mas a comunidade seferadita (judeus do Oriente e da Península Ibérica) em São Paulo se fortaleceu.
Judeus expulsos de países árabes chegam ao Brasil
Em 1959, seu pai participou da reunião que estabeleceu a Congregação Beit Yaacov, um marco inicial da vida judaica sefaradita no país. “Foi um novo começo, mas sempre com as lembranças da Síria ainda doloridas”, diz Ezra.
Até então, eles frequentavam a sinagoga da Rua da Abolição, que tinha origem portuguesa. A primeira sinagoga Beit Yaacov foi inaugurada na Rua Bela Cintra, em 1964. Mais de trinta anos depois, em 1995, foi fundada a Beit Yaacov da Rua Veiga Filho, em Higienópolis.
A congregação hoje possui cerca de 800 famílias. Tem duas sinagogas em São Paulo e uma no Guarujá. Mantém uma sede para o seu movimento juvenil, o Netzah, uma escola e uma sede de Assistência Social. Atua nas áreas sociais, culturais e filantrópicas.
Ezra estudou (colégio Paes Leme), fez faculdade e depois administrou a empresa criada pelo pai. “Foi a primeira empresa de embalagens plásticas no Brasil”, diz. Casou-se com Marita, cuja família fora expulsa do Egito, e teve quatro filhos.
Ao olhar para o passado, Ezra Harari faz uma reflexão sobre o paradoxo desta memória histórica. “Ninguém fala sobre os judeus que foram expulsos dos países árabes”, desabafa ele.
“Israel é acusado de limpeza étnica, mas pouco se fala sobre o que aconteceu conosco”, diz, ao se referir à dramática diminuição da comunidade judaica nos países árabes, de 950 mil judeus para menos de 8 mil nos dias de hoje.”
Ezra nunca voltou a Aleppo, nem ao Líbano, e tampouco tem planos de retornar à sua terra natal. “Prefiro manter distância”, explica, uma escolha que reflete o trauma de uma fase marcada pela expulsão e pela perda. Contudo, mesmo com as feridas, Ezra se mantém firme em sua esperança pela paz no Oriente Médio e pela convivência entre os povos.
“Quero que essa guerra que envolve Israel termine o quanto antes, nosso povo busca sempre a paz.”
Ezra Harari construiu uma trajetória de sobrevivência e de resistência. Típica do povo judeu. No Brasil, ele conheceu um novo lar. Mas ele só pode dizer isto porque encontrou no país a permissão para a sua herança judaica continuar a existir. É por isso que ele sempre faz questão de dizer: “Sou judeu e brasileiro.”