Uma das primeiras mulheres a pegar a faixa preta do mundo é brasileira. Patrícia Lage tem 43 anos de jiu-jitsu e 29 deles na faixa-preta. É professora na B9, escola de luta em São Paulo. E hoje é uma das únicas mulheres com seis graus que ainda compete.
Patrícia Lage lutou no Mundial Master de jiu-jitsu nesta sexta (30) e pegou o bronze na categoria Master 4, peso leve, e no absoluto. “Passei por uma cirurgia de quadril no final do ano passado. Demorei um pouco mais para ficar 100% e voltar a treinar. Nos últimos meses, ainda tive lesão nos dois pulsos. O master exige muito do corpo”.
Em 2023, Lage foi campeã mundial depois de uma cirurgia de hérnia e uma preparação corrida de seis semanas.
Referência no jiu-jitsu, Lage compartilhou com a CNN sua trajetória no esporte. No início dos anos 80, o cenário na luta era outro: “Eu lutei com homens durante um bom tempo em muitas competições”.
Lage entrou no esporte através do pai, que era mestre de judô e jiu-jitsu. “Eu queria usar a mesma roupa que ele e minha mãe falava: ‘não pode, o sensei não deixa mulher treinar’”. Um dia Patrícia viu crianças com kimono, inclusive meninas, e encontrou ali a oportunidade para iniciar no esporte. “Sempre ouvi que jiu-jitsu não era para mulher, que luta era coisa de menino”.
“Eu vim do tempo do dinossauro, dentro do treino sempre foi só eu de menina. O aumento de mulheres nessas quatro décadas foi absurdo. Em todos os campeonatos, tem bastante mulher, mas ainda não somos nem metade. É um esporte muito dominado por homem. Para mim, que começou do zero e pavimentou o caminho, é impressionante ver a quantidade de meninas no tatame”, afirma Lage.
Outra atleta da B9 é a Carla Franco, vice-campeã da categoria Master 3, peso pluma. Carla conta que sempre admirou o esporte, mas demorou a pisar em um tatame por ter poucas mulheres no início dos anos 2000: “me deixava receosa”.
“Eu pedi para o meu pai para fazer judô quando eu era criança. Ele não deixou por ser um esporte muito masculino. Depois eu comecei a trabalhar e já conseguia pagar mensalidade. Achei uma academia com mulheres e comecei a treinar em 2002”, relembra a atleta.
Em 22 anos no tatame, foi a primeira vez que Carla lutou com tantas mulheres em um grande campeonato. “Já participei cinco vezes do Mundial Master e nunca fiz mais que duas lutas. Nesse ano, tiveram nove meninas na minha categoria, esse número nunca passava de três”.
A campeã mundial no Master 1 no absoluto Carina Santi começou no esporte um pouco depois que Carla, em 2009. A atleta da Almeida JJ também percebe esse aumento de mulheres no tatame.
“Quando eu comecei a treinar, raramente tinham meninas para lutar. Muitos eventos eu acabei ganhando porque não tinha nenhuma atleta inscrita. O trabalho de formiguinha foi feito por várias atletas da minha geração e hoje o jiu-jitsu feminino está se tornando uma potência”, relata Carina.
Todas as atletas entrevistadas pela reportagem chegam no mesmo ponto: a falta de investimentos no esporte brasileiro. No Mundial Master em Las Vegas, Carina Santi pegou o ouro no Master 1 absoluto. A atleta coleciona muitos títulos nos 15 anos de esporte: quatro vezes campeã europeia, dois ouros em pan-americano e oito vezes campeã brasileira.
Mesmo carregando muitas medalhas no pescoço, Carina quase desistiu do mundial por falta de recursos financeiros. A atleta tirou do próprio bolso cerca de R$ 12 mil para fazer a viagem aos Estados Unidos. Na conta, não está incluso os gastos com um ano de preparação, como alimentação, consultas, professores e kimonos.
De patrocínio, Carina recebe R$ 5 mil reais por ano da prefeitura de Osasco e conseguiu R$ 1.500 de uma marca para participar do mundial.
A história se repete com Carla Franco, que também coleciona títulos no jiu-jitsu. A brasileira é tetracampeã paulista, campeã europeia, bicampeã pan-americana, tetracampeã brasileira e quatro vezes vice-campeã mundial.
A atleta está de mudanças para o Vietnã em busca de melhores condições de trabalho. “No Brasil, não temos valorização. As pessoas bem sucedidas no esporte saem do país.”
A multicampeã Patrícia Lage passa pela mesma dificuldade das colegas, mesmo com mais de 40 anos de esporte na carreira. “Hoje eu pago tudo com o meu dinheiro. Não tenho patrocínio de ninguém. Os meus alunos fizeram uma vakinha para me ajudar a ir para o mundial”.
Lage ainda lembra que as premiações em dinheiro para mulheres são “infinitamente menores” do que as dos homens. “Difícil ter apoio financeiro no Brasil, principalmente por ser mulher”, afirma.
Carina Santi começou no esporte aos 19 anos, depois da morte do pai. “Eu tive depressão, crise do pânico e de ansiedade. Ganhei muito peso. Comecei a treinar para melhorar os sintomas do luto e percebi que o jiu-jitsu foi minha salvação”.
No meio do caminho, Carina conheceu o marido, também atleta de jiu-jitsu. Os dois tiveram dois filhos: Alicia, de nove anos, e Bernardo, de três. A família toda é do esporte. “Além de ser mulher dentro do tatame, eu sou mãe também. As dificuldades são diárias. Muitos campeonatos eu estava amamentando”.
Na vida de Carla, o jiu-jitsu mudou os planos profissionais. “Eu trabalhava com administração e, em paralelo, eu treinava. Eu larguei o corporativo e fui fazer faculdade de educação física. Hoje sou professora de jiu-jitsu e personal trainer”.
Com Lage não foi diferente. A atleta começou a dar aulas de jiu-jitsu aos 15 anos, levantando dinheiro para entrar na faculdade de medicina veterinária. Além disso, Patrícia tinha desconto na mensalidade do curso por participar de competições pela universidade.
Na vida pessoal da atleta, o esporte aproximou ainda mais pai e filha. “Meus pais se separaram quando eu era muito pequenininha. Acredito que o treino foi uma forma de eu me manter perto do meu pai”.
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Roberto Lage e Patricia Lage no início dos anos 80, ainda na faixa branca. • Reprodução/ Arquivo pessoal
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Roberto Lage e Patricia Lage na faixa amarela.
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Roberto Lage, com a faixa coral, e Patricia Lage, com a faixa preta. • Reprodução/ Arquivo pessoal
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O Mundial Master de Jiu-Jitsu é o campeonato mais importante para a categoria no mundo do esporte. O torneio é organizado pela IBJJF (International Brazilian Jiu-Jitsu Federation) e acontece em Las Vegas. Nesse ano, as lutas ocorreram entre os dias 29 e 31 de agosto.
As categorias do evento envolvem quatro fatores: gênero, idade, peso e cor da faixa. O grupo Master já é para atletas com mais de 30 anos, divididos em sete categorias, a depender do ano de nascimento:
- Master 2: 1988 e antes
- Master 4: 1978 e antes
- Master 5: 1973 e antes
- Master 6: 1968 e antes
- Master 7: 1963 e antes