Uma reportagem publicada pelo Wall Street Journal revelou que a Universidade de Harvard, por meio de sua Escola de Governo John F. Kennedy, está entre as instituições ocidentais que oferecem treinamentos a funcionários públicos chineses vinculados ao Partido Comunista da China (PCCh).
A iniciativa faz parte de um programa governamental chinês que, desde 2002, envia milhares de quadros de nível médio e alto para o exterior com o objetivo de melhorar sua capacitação em governança pública. O conteúdo ministrado inclui desde processos orçamentários até estratégias de combate à corrupção e formulação de políticas públicas.
O programa é descrito como parte de um esforço estratégico mais amplo do regime chinês. Um documento oficial do Partido, publicado em setembro de 2005, classificou o aprimoramento da capacidade de governar como um tema “estratégico de grande importância”.
Para o PCCh, essa habilidade determinará “o futuro e o destino da nação chinesa, a vida e a morte do Partido, bem como a estabilidade e prosperidade duradouras do país” e, segundo o documento, os membros devem “tirar experiências e lições do sucesso e do fracasso de outros partidos no mundo” para “aprimorar a capacidade de governança”.
O conteúdo dos cursos, segundo os organizadores, não tem como objetivo propor soluções únicas, mas sim apresentar “ferramentas” para que os participantes escolham abordagens adequadas ao contexto próprio do regime.
Apesar da diferença entre os sistemas políticos, os organizadores desses programas consideram que os desafios enfrentados por gestores públicos em diferentes países são semelhantes.
Diversos funcionários chineses entrevistados na reportagem relataram interesses práticos e específicos. Ji Bingwei, vice-prefeito de Kaifeng, cidade de 4,6 milhões de habitantes à época, procurava respostas para os problemas de desemprego e pobreza.
“Essas questões são a chave para manter a estabilidade social”, afirmou. Depois de conhecer o papel de fundações no apoio a grupos vulneráveis nos EUA, Ji passou a considerar a mobilização de organizações não governamentais para função semelhante em sua cidade.
Outro caso citado é o de Li Wenzhang, então vice-diretor-geral do Departamento de Comércio Justo da Administração Estatal para Indústria e Comércio da China. Ele buscava compreender como os legisladores norte-americanos regulam monopólios e concorrência desleal.
De acordo com Saich, os organizadores esperavam que os funcionários chineses fossem “um pouco conservadores e não tão dispostos a discutir”. No entanto, relata que eles se mostraram “animados, curiosos e ansiosos para aprender”. Muitos, segundo o professor, já tinham consciência de que “soluções diferentes são necessárias para sistemas diferentes”.
Ainda que a presença desses profissionais em cargos de alto escalão ainda seja limitada pela permanência de uma geração mais velha no comando do Partido, o professor Cheng Li, da Hamilton College, acredita que esses programas podem influenciar transformações políticas futuras.
“Embora as lições enfatizem aspectos técnicos da governança, a essência é tornar o governo mais responsável diante do público e enfatizar a importância do Estado de Direito”, afirmou. Para ele, essa formação “ajudará a familiarizar futuros líderes chineses com normas e valores internacionais” e pode tornar o processo político “mais científico, racional e democrático”.
No entanto, Saich pondera que o impacto estrutural desses treinamentos só ocorreria caso os egressos desses programas chegassem ao núcleo do poder em Pequim. Ele também destaca que “o PCCh não tem intenção de adotar qualquer mudança significativa na estrutura política que se assemelhe ao sistema ocidental”.
Segundo Li, muitos participantes dos programas no exterior são cotados para cargos de vice-ministros e governadores adjuntos — posições que frequentemente levam a postos nacionais de alta influência.
O texto do WSJ encerra com a informação de que o governo chinês tem priorizado a promoção de funcionários com experiência internacional. Em ministérios como os de finanças, relações exteriores, ciência e tecnologia e educação, até 75% dos altos cargos são ocupados por pessoas que estudaram no exterior.

Trump reacende o debate sobre a relação entre Harvard e o PCCh
Os dados revelados pela reportagem sobre o treinamento de burocratas do PCCh em Harvard ganharam novo fôlego diante do atual embate entre a universidade e o governo dos EUA. A administração do presidente Donald Trump adotou uma série de medidas que colocam Harvard no centro de uma disputa política, financeira e ideológica com a Casa Branca.
Nos últimos meses, a universidade passou a ser alvo de restrições diretas impostas pela gestão republicana. Entre as ações mais contundentes, está a suspensão da emissão de vistos de estudo para estrangeiros, anunciada no fim de maio.
Segundo o site Politico, a medida foi acompanhada de orientações internas para interromper entrevistas consulares e pode afetar milhares de estudantes internacionais. A decisão foi seguida por uma ordem do Departamento de Segurança Interna que proibia Harvard de matricular novos alunos estrangeiros e determinava o rompimento com os que já estavam vinculados à instituição.
A universidade reagiu judicialmente, e no dia seguinte a Justiça suspendeu a decisão de forma liminar. Em nota, Harvard classificou a medida como uma “violação flagrante da Primeira Emenda” da Constituição dos EUA e acrescentou que a ação ameaçava “causar sérios danos à comunidade de Harvard e ao nosso país”.
Paralelamente, o governo Trump efetuou cortes bilionários no orçamento da universidade, com impacto direto em contratos de pesquisa, bolsas e programas educacionais. O congelamento de US$ 2,26 bilhões em verbas foi formalizado depois de a instituição se recusar a cumprir exigências da força-tarefa federal contra o antissemitismo.
Em publicações nas redes sociais, o presidente Trump foi explícito: “Estou considerando retirar US$ 3 bilhões em verbas de subsídios de uma Harvard muito antissemita e entregá-los às escolas técnicas do país” e acusou a universidade de “coordenar com o PCCh em seu campus”.
A acusação direta de coordenação com o PCCh confere novo contexto ao conteúdo revelado pelo WSJ, que descrevia a presença sistemática de burocratas chineses em cursos oferecidos por Harvard com objetivo de “aprimorar capacidades de governança” na China.
Com a escalada da crise, Harvard passou a enfrentar a ameaça de perda de sua isenção fiscal, medida que o governo avalia como retaliação por “falta de comprometimento com valores e prioridades nacionais”, conforme documentos oficiais. A instituição, por sua vez, reafirmou que não abrirá mão de sua autonomia.
Nesse cenário, a relação revelada entre Harvard e o governo chinês deixa de ser um dado histórico isolado e passa a integrar um conflito geopolítico mais amplo, marcado por tensões entre a academia norte-americana, o governo republicano e os interesses estratégicos do regime comunista.