É possível fazer um vinho disruptivo, diferente de tudo o que foi feito no passado em pleno ano de 2024? A resposta é: sim, no entanto, exige uma sólida bagagem dos clássicos.
Um exemplo é o conselho que recebi de professor que tive na escola: “Para tornar-se um ótimo leitor, você precisa começar pelos clássicos”. Na época, não entendi a dica, mas tomei aquilo como uma ordem para o início da vida intelectual. Depois, entendi que o objetivo é saber a origem e o que nos trouxe até o que conhecemos nos dias de hoje.
Esse mesmo raciocínio também deve ser aplicado ao mundo dos vinhos, afinal, a sombra dos grandes rótulos do passado sempre acompanham qualquer enólogo entusiasta.
Aliás, atire a primeira pedra quem nunca bebeu um pinot noir do novo mundo e tentou achar traços de um Borgonha inesquecível na taça.
Durante minhas andanças na Prowine 2024, confesso que fiquei reticente em experimentar algumas propostas de vinícolas brasileiras — com certeza, meu preconceito com “o novo” aflorou por aqui. Mesmo assim, fiquei extremamente surpreendido por dois vinhos que peço licença para comentar.
Ao visitar os conterrâneos da Casa Valduga, descobri algo que nunca tinha imaginado beber: um espumante moscatel brut. Isso mesmo, doce sem ser doce.
Rotulada pela empresa irmã, Ponto Nero, a bebida levou o nome de Live Dream Brut. Durante a degustação, você sente o “ataque” de um moscatel e espera vir aquele no “final de boca”, mas não o encontra, o que te faz ficar “perdido”.
O vinho possui um equilíbrio muito bom entre a acidez e a refrescância, com notas frutadas muito presentes e textura cremosa.
Diferente do que ocorre com o moscatel tradicional, por aqui a fermentação durou mais tempo até a finalização da autólise das leveduras, indicativo de que todo o açúcar das uvas havia sido consumido.
Ainda nas borbulhas, encontrei mais uma inovação que fez muitas pessoas pararem de “fazer cara feia” ao beber sidra.
A famosa bebida das festas de final de ano foi reinventada pelos “guris” da Garbo Enologia Criativa. A vinícola já é conhecida por fazer coisas diferentes e decidiu apostar na integração da maçã com a uva ao criar o “Garbo Pecado”. O rótulo estampa o “fruto proibido” que remete ao pecado original bíblico, uma menção a ousadia pelo feito.
Ela é feita com maçãs colhidas em São Joaquim (SC), região referência no cultivo da fruta em todo Brasil, e passaram pelo processo de champenoise, o mesmo método utilizado na produção de espumantes e champagnes com fermentação em garrafa.
Para integrá-la ao mundo dos vinhos, os enólogos decidiram dar um toque especial com o licor de expedição, que possui chardonnay da serra gaúcha.
Na taça, o “Pecado” possui coloração amarelo palha, perlage abundante e a predominância de aromas de frutas brancas e tropicais.
No paladar, há o equilíbrio entre o frescor e o dulçor, o que transfere complexidade e ajuda a bebida ser ideal para harmonizar com sobremesas ácidas. Inclusive, este foi o rótulo que encerrou o jantar promovido pela vinícola juntamente com a cristaleria Mozart, em São Paulo, no início de outubro.
Os exemplos mostram que, por mais que o universo enológico seja “conservador”, sempre existe espaço a ser explorado e maneiras de fazer algo “fora da caixinha”, desde que o vinho seja bom. Aliás, se o vinho for bom, pode me convidar.
*Os textos publicados pelos Insiders e Colunistas não refletem, necessariamente, a opinião do CNN Viagem & Gastronomia
Sobre Stêvão Limana
Stêvão Limana é jornalista formado pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), pós-graduado em enologia, postulante a sommelier profissional e maratonista nas horas vagas. Na TV, fala sobre política e eleições, enquanto na internet foca em vinhos e gastronomia.