segunda-feira, julho 8, 2024
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Foro privilegiado ampliado pelo STF é retrocesso jurídico

Vera Chemim*

Há poucos dias, o STF formou maioria para expandir o foro privilegiado sobre os crimes cometidos durante o exercício do mandato e a sua manutenção, após o término (seja por renúncia, cassação, não reeleição, além de outros), desde que relacionados às suas funções. Dessa forma, a Corte reviu seu entendimento de 2018, quando optou por restringir essa prerrogativa. O ministro Gilmar Mendes é o responsável por trazer a discussão novamente à tona, em meio à queda de braço da Corte com o Congresso Nacional.

Em linhas gerais, a maioria do Supremo entendeu que o foro privilegiado só será desconsiderado na hipótese de que o crime tenha sido cometido antes do mandato ou não tenha relação com o seu exercício. Partindo da constatação de uma instabilidade política pari passu com a insegurança jurídica decorrentes da politização da Justiça e, consequente, o ativismo judicial, a mudança de jurisprudência do STF no sentido de expandir o foro representa um retrocesso constitucional, sobretudo porque o tema remete ao Poder Legislativo, enquanto instituição competente para a criação e edição de emendas constitucionais e/ou legislação infraconstitucional.

A observação é oportuna, uma vez que o foro privilegiado deveria ser extinto, ou, no mínimo, sofrer uma severa restrição, aplicando-se aquela prerrogativa, apenas para as funções públicas mais relevantes, como o presidente e vice-presidente da República, os presidentes das duas Casas Legislativas e do STF, a exemplo da maioria dos países democráticos, por uma razão óbvia: a efetividade do Princípio da Igualdade.

A decisão em si, demanda um alerta para as prováveis consequências jurídicas e políticas a serem enfrentadas pela Corte e os seus jurisdicionados. O aumento de ações e recursos de natureza civil, administrativa e penal oriundos da expansão do foro privilegiado serão determinantes para acarretar a sua prescrição, estimulando a sensação de impunidade ad eternum inerente ao velho status quo.

Em segundo lugar, é fato inquestionável que o STF é um tribunal constitucional, cujas atividades típicas remetem ao processamento e julgamento de ações dessa natureza que, certamente, serão prejudicadas com o crescente número de processos que continuarão e/ou ingressarão naquele tribunal.

O debate e julgamento de ações de controle abstrato de constitucionalidade são cruciais para a manutenção da força normativa da Constituição, no sentido de garantir a segurança jurídica indispensável para o funcionamento das instituições públicas (do Poder Executivo e Legislativo) e privadas e o próprio Judiciário.

Além disso, a função de “legislar” é típica do Parlamento, representado pela Câmara e Senado, competentes para deliberarem sobre o tema por meio de Emenda Constitucional.

As disfuncionalidades presentes no Judiciário e o frequente ativismo do STF constituem os ingredientes ideais para o conflito entre os dois Poderes, especialmente pelo fato inequívoco de que a grande maioria dos representantes políticos enfrentam processos perante aquela instância, o que contribui ainda mais para a sua submissão ao Supremo.

Não é preciso muito esforço interpretativo para concluir que a expansão do foro privilegiado (alcançando parlamentares que cometeram crimes durante o mandato e relacionados ao seu exercício, mantendo a competência do STF para o seu julgamento após o término do mandato) aumentará, indiscutivelmente, o alcance do poder daquela Corte no sentido de exercer um controle político de membros do Congresso Nacional, transformando-o em um “apêndice” do Judiciário.

Políticos como o ex-presidente Jair Bolsonaro, além de outros ex-deputados e ex-senadores, manterão o foro privilegiado e serão processados e julgados pelo STF, a despeito de a Constituição e a legislação infraconstitucional preverem o seu encaminhamento para a instância de primeiro grau, uma vez que até a presente decisão do STF, eles não detinham mais o foro privilegiado.

O caso de Bolsonaro e de outros representantes políticos a serem julgados pelo STF escancara ainda mais a fragilidade do Congresso, ao correr atrás e esboçar a mesma pauta (como ocorreu com o marco temporal), cuja decisão tenderá à restrição daquele instituto.

O fato de que a decisão do Legislativo é a que vai prevalecer (pelo menos até que alguns dos seus próprios membros venham a judicializar novamente o tema) realimenta, sobremaneira, a instabilidade reinante nas instituições que compõem os Poderes.

Independentemente da decisão final sobre o foro privilegiado, percebe-se que a única vantagem da sua expansão, aos moldes do voto do ministro relator, Gilmar Mendes, é a de que a competência do STF será mantida em caráter definitivo, mesmo que haja mudança entre o exercício dos diversos mandatos eletivos.

Observe-se que o voto do então decano Marco Aurélio Mello, proferido em 2018 no sentido de restringir o foro privilegiado, caminhava na mesma direção, sob o argumento de que, com o término do mandato, a competência do STF cessaria, também, definitivamente. Resta a esperança de que a decisão sobre o foro por prerrogativa de função emane definitivamente, do poder competente para criar Emendas Constitucionais e leis, uma vez que se trata de um poder político que representa a soberania popular e tem o dever constitucional de promover avanços e não retrocessos na Carta Magna.


*Vera Chemim é advogada constitucionalista e mestre em Direito público pela FGV

Via Revista Oeste

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