O youtuber Felipe Neto tinha acesso privilegiado ao Twitter/X, de acordo com as informações publicadas na noite desta quarta-feira, 10, pelos jornalistas Michael Shellenberger, Eli Vieira e David Ágape. A publicação atualiza o caso do Twitter Files Brasil.
O trio revela que um funcionário sênior da plataforma teria proposto um encontro entre Felipe Neto e Yoel Roth, chefe de segurança da rede social, em junho de 2021. De acordo com a publicação, o convite ocorreu em meio ao contexto de sanções impostas pela moderação de conteúdo do Twitter/X ao jornalista Allan dos Santos, hoje exilado nos Estados Unidos.
Além de youtuber e cabo eleitoral do então candidato Luiz Inácio Lula da Silva, em 2022, Felipe Neto é fundador do Instituto Vero, uma organização não governamental (ONG) parceira do Programa de Enfrentamento à Desinformação do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). A instituição também patrocinou, recentemente, eventos do TSE contra a “desinformação”.
De acordo com os jornalistas, em 14 de junho de 2021, o então chefe de políticas públicas do Twitter, Fernando Gallo, enviou um e-mail para Yoel Roth, em que pede uma investigação completa das postagens de Allan dos Santos.
“O jornalista tem sido muito problemático para nós no Brasil”, alertou Gallo, em referência a Allan dos Santos. “Ele insiste em postar coisas muito controversas sobre a covid-19 e outros conteúdos abusivos.”
Para o executivo, Roth — envolvido na decisão de banir a conta do presidente norte-americano Donald Trump — deveria banir o perfil de Allan dos Santos. Além disso, Gallo também pediu que Roth mudasse de ideia sobre manter no ar um tuíte em que o jornalista “especulava a respeito do estado de saúde de alguém, fazendo uma conexão entre uma vacina e problemas de saúde, portanto, criando dúvidas a respeito da segurança da vacina”.
Na época, a decisão de Roth de não apagar o tuíte de Allan dos Santos irritou Felipe Neto. O youtuber defendia, na ocasião, lockdowns e outras medidas sanitárias. Em seguida, no mesmo e-mail, Gallo contou a Roth que o youtuber tecia críticas frequentes ao então governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL-RJ), o que fazia dele um “antagonista e oponente”.
Gallo afirmou que Felipe Neto criticava fortemente o Twitter/X pelo que “ele considera leniênciada da nossa parte em aplicar as nossas regras sobre covid-19”. De modo geral, Felipe Neto fazia pressão por uma abordagem mais dura na remoção de conteúdo.
“Ele está bem bravo”, informou Gallo, referindo-se a Felipe Neto. De acordo com o e-mail, Gallo menciona que o youtuber estava ficando “mais barulhento”. O receio do executivo, segundo informações dos arquivos do Twitter/X, era de que as conversas privadas entre os três fossem divulgadas por Felipe Neto.
Ao analisarem os diálogos e os e-mails, os jornalistas concluíram que houve acesso privilegiado do influenciador para fazer lobby de suas causas dentro do Twitter/X.
Em seguida, Gallo convida Roth para mais uma conversa com Felipe Neto: “Embora haja alguns riscos, nós e a equipe de comunicações queríamos ver se você estaria aberto a uma conversa em off com ele, para que ele sinta que foi ouvido”.
Yoel Roth analisa postagem de Allan dos Santos
Roth topou a conversa com Felipe Neto, em resposta ao e-mail de Gallo e com cópia à diretora jurídica Vijaya Gadde.
“Se você me disser que esta é uma conversa de alto valor para eu participar, faço com prazer”, disse. Na mesma mensagem de 2021, Roth avaliou a postagem de Allan dos Santos e admitiu que o caso estava “uma bagunça” porque, segundo ele, a equipe de moderação de conteúdo contou errado o número de violações de Allan dos Santos.
A postagem de Allan dos Santos em relação à covid-19 fazia referência a uma parada cardíaca que o jogador de futebol dinamarquês Christian Eriksen sofreu, em 12 de junho de 2021, dois dias antes da troca de mensagens.
Apesar de classificar todas as narrativas a respeito da parada cardíaca como “desafiadoras”, Roth explicou que as políticas do Twitter/X “não cobrem a especulação a respeito do estado de saúde de indivíduos ou efeitos colaterais individuais em potencial da vacinação”. Ele acrescentou que, em contrapartida, o jogador “não foi vacinado” e afirmou que o tuíte de Santos era “enganoso”.
Diante disso, Roth recomendou a suspensão da conta de Allan dos Santos por causa de “outras violações”. Roth também se mostrou preocupado com a vitória judicial temporária do jornalista conta a censura do Youtube na época. O executivo afirmou que, a partir daquele fato, seria um “desafio” explicar uma possível suspensão da conta de Allan dos Santos, caso a plataforma decidisse por isso.
Equipe jurídica do Twitter/X analisa o caso e compara Allan dos Santos a Alex Jones
Os consultores jurídicos sêniores Rafael Batista e Diego de Lima Gualda emitiram um parecer sobre Allan dos Santos e sobre a proposta de um possível encontro com Felipe Neto. Eles recomendaram deixar o sistema de contagem de violações “seguir seu curso”.
De acordo com os arquivos, os especialistas estavam preocupados em relação à abordagem de suspensões de contas no Brasil. Para eles, os tribunais de instância inferior iam favorecer os perfis bloqueados, e não a rede social.
Mesmo assim, Batista e Gualda acusaram Allan dos Santos de manipular o sistema do Twitter/X com a intenção de espalhar desinformação. Além disso, Gallo e a dupla de consultores jurídicos compararam Allan dos Santos a Alex Jones, influenciador norte-americano condenado na Justiça local, entre outros motivos, por dizer que o ataque de um atirador à escola Sandy Hook era uma farsa.
Por fim, a dupla jurídica afirmou que o Twitter/X podia “tirar vantagem” de decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) pela suspensão global de uma das contas de Allan dos Santos, além de aproveitar “materiais midiáticos” que corroboravam “o perfil de teórico da conspiração” do jornalista.
Eles também mencionaram, indiretamente, que poderiam tirar proveito das investigações da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid-19 contra Allan dos Santos. Ainda expressaram desconfiança de que Allan dos Santos já estava morando nos Estados Unidos.
Contudo, segundo o jornal Folha de S.Paulo, para um representante norte-americano do Departamento Federal de Investigação (FBI), as supostas violações de Allan dos Santos eram “só palavras”.
De acordo com um e-mail de uma advogada do Twitter/X, de 6 de junho de 2022, o ministro do STF Alexandre de Moraes ordenou a suspensão de seis contas de Allan dos Santos, além da coleta de dados associados a elas.
Moraes também ordenou o monitoramento do jornalista para evitar a criação de novas contas. A advogada não questionou a ordem e disse que “vamos informar que, se identificarmos quaisquer novas contas relacionadas, denunciaremos ao Supremo”.
“Não podemos confiar em Felipe Neto”
Batista e Gualda enviaram um outro e-mail em 15 de junho de 2021, em que pedem para que o possível encontro entre Yoel Roth e Felipe Neto não ocorresse. Para ambos, seria um “risco para a nossa estragégia”.
Conforme o texto, Felipe Neto “é alguém em quem não podemos confiar completamente para manter uma conversa privada”. Os consultores disseram também que o influenciador poderia tentar tirar proveito do cenário do banimento de Allan dos Santos, bem como da permanência do perfil.
Os dois conselheiros jurídicos afirmaram que estavam cientes de que o encontro poderia criar uma “oportunidade de qualquer narrativa” de que o Twitter/X foi “enviesado” ao abrir um canal específico de comunicação com Felipe Neto, que não está “aberto para o outro lado”.
Um segundo receio era de que a plataforma não estaria seguindo seus próprios procedimentos e políticas de maneira “consistente”. Em vez disso, o Twitter/X estaria respondendo a uma “pressão” de um usuário famoso.
“Na nossa opinião, os riscos de ter essa conversa com Felipe Neto ultrapassam os benefícios em potencial”, concluíram os executivos. No entanto, conforme as mensagens privadas iniciais de Fernando Gallo, o canal de comunicação com Felipe Neto já estava aberto.
Os jornalistas concluíram que, pela análise dos arquivos do Twitter/X, não foi possível determinar se o encontro entre Yoel Roth e Felipe Neto realmente aconteceu.
Gallo firma acordo com o TSE para remoção de conteúdo
Fernando Gallo deixou o Twitter e, atualmente, é diretor de políticas públicas do TikTok no Brasil. De acordo com o blog do aplicativo chinês de fevereiro de 2022, Gallo noticiou uma parceria com o TSE “para combater a desinformação”.
Conforme a agência Reuters, entre 8 e 15 de janeiro de 2023, na esteira do episódio do 8 de janeiro, o TikTok removeu mais de 10 mil “conteúdos golpistas” de seus servidores.
O governo Lula convidou Felipe Neto a fazer parte de um grupo de trabalho do Ministério de Direitos Humanos e Cidadania, em fevereiro de 2023, dedicado ao “combate ao discurso deódio e ao extremismo”. O foco seria a regulamentação das redes sociais. No mesmo mês, Neto discursou para a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) a respeito do tema. Críticos do governo chamaram o projeto de “Ministério da Verdade”.