Um antigo estaleiro em uma parte remota de Copenhague guarda a experiência gastronômica mais interessante que já vivi. Atrás de uma porta de bronze de duas toneladas, em um prédio antes usado pelo Teatro Real Dinamarquês para construir cenários, está o Alchemist, um restaurante que desafia as normas do que é, de fato, ser um restaurante. Esperar o inesperado é o lema da casa.
Aberto em 2019 pelo jovem chef dinamarquês Rasmus Munk, o Alchemist é daqueles lugares que devemos ir de cabeça aberta e olhos atentos. Isso porque o jantar não é um mero jantar, mas sim um verdadeiro espetáculo coreografado que reúne mudanças de ambiente, tecnologia, toques teatrais e provocações.
Sim, provocações, pois as etapas, chamadas aqui de “impressões”, nos fazem pensar além do prato ao interagirem com nossos sentidos e ao iniciarem debates sociais e éticos. Entre os pratos há desde pão que pode ser assado no espaço, pé de galinha em uma jaula e até barra de chocolate em forma de caixão que nos lembra o trabalho infantil em plantações de cacau.
O próprio restaurante alerta: a reserva, bastante concorrida, pode não ser a escolha ideal para fechar um negócio ou para um primeiro encontro. Isso não impede da casa manter suas duas estrelas Michelin e de garantir neste ano o 8º lugar na lista do The World’s 50 Best Restaurants.
A experiência
Composto por vários ambientes, o interior do restaurante não tem entrada de luz natural e a decoração é contemporânea, com uma paleta escura e misteriosa. A experiência dura entre quatro e seis horas. A impressão é a de estarmos fora do tempo e do espaço.
O lounge principal tem um pé direito de 22 metros, com uma parede de vidro que se abre para a cozinha. A adega também é superlativa: são 15 metros entre o chão e o teto, onde cabem 10 mil garrafas.
Outro número surpreende: são 50 impressões ao todo, mas nem todas as etapas são pratos, já que as interações e o espetáculo também entram na conta. A experiência sai por 5.400 coroas dinamarquesas (cerca de R$ 4.350), com opção de harmonizações a partir de 1.800 coroas (R$ 1.450).
Parte do roteiro da 7ª temporada do CNN Viagem & Gastronomia na Escandinávia, uma das primeiras impressões comestíveis que chega à minha frente é uma borboleta, cultivada pelo biólogo da casa. “Ela contém de quatro a cinco vezes mais proteína que a carne bovina. Essa é a nossa impressão que questiona o uso de proteínas. É bem fácil, cresce rápido, e se contém muita proteína, podemos ingerir”, conta o próprio Rasmus ao me servir.
Depois, chega uma receita que pode ser levada ao espaço. É um pão de textura levíssima e que dissolve na boca. “É feito de proteína do leite e um pouco de celulose de alguns vegetais que podem ser cultivados na Lua. Conseguimos solo lunar artificial com a Universidade de Harvard. Então pegamos a celulose e a proteína e encapsulamos com aroma de pão de massa azeda. Assamos com ar quente e depois refrigeramos”, explica o chef.
Tudo isso é parte da “Cozinha Holística” de Rasmus, filosofia concebida e formulada por ele que almeja redefinir a compreensão do conceito de jantar. Ingredientes de qualidade e sabores marcantes são a base, mas a experiência se estende além do prato com uso de teatro, arte, ciência, tecnologia e design.
Claro que queremos bons sabores e os melhores ingredientes, mas também queremos desafiar as pessoas. Acho que quando criamos esses sentimentos você se lembra por bastante tempo
Rasmus Munk, chef e coproprietário do Alchemist
Alimento para reflexão
O jantar é dividido em atos em diferentes ambientes, incluindo um planetário, construído em formato de domo com 200 toneladas de aço. É o coração do restaurante, onde projeções em 360º nos fazem mergulhar nos mais distintos recintos – imagine olhar a Terra de cima, entrar no corpo humano e sentir as batidas do coração ou ainda ser transportada ao oceano ao lado de águas-vivas e sacos plásticos.
Aqui entram em cena pratos de caráter mais políticos e provocadores. Tome por exemplo o “1984”, inspirado no livro de George Orwell. O conjunto da louça e da receita resulta em um grande olho que nos vigia – a pupila é preenchida com lagosta em molho de mexilhão, gel de olho de bacalhau e caviar.
Outro prato é o “Beijo de Língua”, que vem em uma louça com formato de uma língua bastante realista. “Os sabores estão por cima e por baixo, mas não use os dentes”, diz a explicação. A brincadeira é lambermos a língua com a nossa própria língua e, assim, sentirmos diferentes gostos em cada ponto.
Mas uma das impressões mais emblemáticas é o cérebro de cordeiro. Esta parte do animal não é comumente consumida na Dinamarca, logo é descartada. O chef, então, desafia essa ideia e apresenta o cérebro como a estrela do show. Para mim, cérebro de cordeiro é um pouco extremo, mas isso faz parte do jogo: Rasmus quer nos confrontar.
O pé de galinha servido em uma gaiola lembra que a grande maioria das aves no mundo vivem enjauladas; já a barra de chocolate final, batizada de “Guilty Pleasure”, vem em formato de caixão, para apontar que a indústria do cacau ainda usa trabalho infantil e mão de obra análoga à escravidão.
Em determinado momento, as impressões chegam a ser quase indigestas, não pela comida, mas sim pela forma como nos são apresentadas, saindo da nossa zona de conforto.
E Rasmus Munk prova que, para ele, o céu não é o limite: em 2025, o chef vai levar seis comensais para o espaço em um jantar estratosférico. O menu será inspirado na exploração espacial ao longo dos últimos 60 anos, refletindo sobre seu impacto na sociedade, tanto científica quanto filosoficamente.
Alchemist
Refshalevej 173C, DK-1432 Copenhague, Dinamarca / Tel.: +45 31 71 61 61 / Funcionamento: terça a sábado, das 17h às 2h / Reservas via site.
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