terça-feira, março 4, 2025
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Escritor viaja à Antártida para espalhar cinzas do pai e tudo deu errado

Vestido para enfrentar o frio extremo, saio do bote inflável e piso na Antártica pela primeira vez. Sinto-me um pouco desajeitado, ainda me acostumando com essa vestimenta.

Estou usando quatro camadas de roupa, incluindo três jaquetas, todas com os capuzes sobre a cabeça. Luvas grossas cobrem meus dedos. No bolso, de todas as coisas, carrego um saco com cinzas, o que só aumenta o volume, que sinto no lado direito da jaqueta enquanto me abaixo para ajustar meus sapatos para neve.

Trouxe as cinzas porque, como muitos viajantes, achei que espalhá-las em um lugar especial seria uma bela homenagem. Em junho, fará dez anos que meu pai se foi, e teria sido incrível compartilhar essa viagem com ele. Talvez um gesto simbólico, como espalhar suas cinzas, pudesse ser suficiente.

Estou pronto para fazer isso nesta caminhada, cercado por icebergs, montanhas, pinguins e o azul intenso das geleiras. Antes de começarmos a trilha, o guia nos dá instruções de segurança — e meu plano começa a desmoronar.

A Antártica tem regras rigorosas: nada deve tocar o solo além de nossas botas. Nada de sentar, nada de anjos de neve, nada de mochilas apoiadas no chão. Nada de jogar comida fora ou despejar líquidos. Sob nenhuma circunstância, nada pode ser deixado para trás.

Ao idealizar essa cerimônia, eu nem pensei nas regras para espalhar cinzas. Mas descobri que elas existem — e não só aqui. No mundo todo, há normas específicas sobre onde e como isso pode ser feito, tanto em terra quanto na água.

Regras e restrições ao redor do mundo

As regras variam bastante. No Reino Unido, por exemplo, não é preciso licença ou autorização para espalhar cinzas no mar — a única recomendação é evitar áreas movimentadas, como marinas.

Nos Estados Unidos, a legislação muda de estado para estado. O órgão responsável também varia: a Agência de Proteção Ambiental (EPA) regula enterros no oceano, enquanto os Parques Nacionais cuidam de suas próprias regras. Terrenos públicos estaduais e municipais, como parques e lagos, seguem normas locais.

No geral, é permitido espalhar cinzas em terras privadas, desde que o proprietário autorize. Isso inclui sua própria casa, a de um vizinho ou até locais como cemitérios e estádios. Em áreas públicas, a liberação depende das regras estaduais, sendo que em algumas regiões — como praias — são completamente proibidas, mesmo que filmes e séries mostrem o contrário.

Se o plano for realizar uma cerimônia no mar, a regra geral exige que o barco esteja a pelo menos três milhas da costa — despejar cinzas enquanto se está na beira da praia não é permitido. Além disso, a EPA exige que a dispersão seja informada em até 30 dias, mas não é preciso preencher nenhum formulário antes.

As mesmas regras valem, em sua maioria, para cinzas de animais de estimação, com algumas exceções. Por exemplo, a EPA não permite que restos de pets sejam enterrados no oceano, embora algumas iniciativas estejam usando cinzas para restaurar recifes de corais na Flórida.

Tecnicamente, espalhar cinzas em um local proibido pode resultar em multa, caso a infração seja descoberta.


Antártica
Vestido para enfrentar o frio extremo, homem viaja para Antártica com a intenção de despejar as cinzas do pai • Will McGough/Wake and Wander Media

Violando o Tratado da Antártica

A Antártica segue suas próprias regras. É o continente mais frio, mais alto, mais seco e mais ventoso do planeta. Sua descoberta e exploração começaram há pouco mais de 200 anos, protagonizadas por nomes lendários como James Cook, Ernest Shackleton, Roald Amundsen e Robert Scott — muitos dos quais morreram nessa jornada.

Conforme o guia da minha expedição, espalhar as cinzas do meu pai aqui violaria o Tratado da Antártica, que protege esse ambiente intocado e mantém a região como um território dedicado à ciência e à paz. O tratado foi assinado em 1959 por doze países, incluindo os Estados Unidos, e hoje conta com quase sessenta nações participantes.

Respeito o que ele diz, mas não quero passar o resto da viagem com esse saco de cinzas queimando no meu bolso. Imagino que espalhar cinzas “de forma ilegal” aconteça o tempo todo. Já cheguei até aqui, não vou desistir agora. Posso fazer isso discretamente, soltando as cinzas pela perna da calça, como Andy Dufresne em “Um Sonho de Liberdade”. Talvez eu consiga me abaixar e enterrá-las sem que ninguém perceba.

Seguimos até o topo da colina, onde paramos em um mirante com vista para a lagoa. A paisagem é inacreditável. O sol aparece entre as nuvens, iluminando os blocos de gelo na água.

Pela primeira vez, vejo o céu azul da Antártica contrastando com os picos cobertos de neve. Baleias-jubarte exalam vapor ao longe, pinguins caminham desajeitados sobre as rochas e icebergs brilham em tons de azul glacial. O lugar perfeito. Discretamente, viro para longe do grupo e estendo a mão para pegar o saco.

A crescente tendência de viajar com cinzas

Minha história não é única. Basta ver o documentário da revista Time, de 2013, sobre o crescimento da cremação ou o artigo da CNN de 2020 sobre o tema. Nos anos 1960, menos de 4% dos americanos eram cremados. Hoje, esse número ultrapassa os 50%, e o desejo de realizar homenagens e cerimônias só aumenta.

O costume de espalhar cinzas em viagens se tornou tão popular que a Carnival Cruise Lines criou um serviço especial para isso, organizando eventos privados para cerimônias no mar.

A Royal Caribbean e outras companhias de cruzeiros também oferecem esse tipo de experiência, levando famílias para longe da costa, além do alcance das regulamentações.

A demanda é tão grande que empresas náuticas menores e independentes passaram a oferecer “cruzeiros para espalhar cinzas” em diversas regiões costeiras, ajudando as pessoas a chegarem às três milhas exigidas pela legislação.

Algumas dessas empresas vão além do básico, oferecendo desde um simples “Cruzeiro Privado para Espalhar Cinzas” até pacotes mais elaborados, como o “Espalhamento de Cinzas Não Acompanhado com Vídeo”.

Viajar com cinzas em voos comerciais geralmente não é um problema, mas há regras sobre o tipo de recipiente permitido. Essas normas variam de companhia para companhia, então é sempre bom conferir com a sua antes de embarcar.

Em viagens internacionais, é prudente verificar as leis locais sobre restos cremados para evitar transtornos na alfândega. Alguns países exigem documentos, como a certidão de óbito, e podem solicitar essa papelada na imigração.

Ele não está ali

A paisagem à minha frente me enche de energia e gratidão, mas percebo que, toda vez que olho para trás para checar se o guia continua distraído, algo parece errado.

Que tipo de lembrança estou tentando criar? A de que desobedeci a lei para enterrar meu pai ilegalmente? Ele trabalhou na polícia por muitos anos — sei que ele não aprovaria. E se o guia me pegar no flagra e se sentir desrespeitado? Isso realmente me ajudaria a fazer as pazes com a perda do meu pai?

Mudo de ideia. Em vez do saco de cinzas, pego apenas o pequeno cartão de oração que está ao lado. Respiro fundo e deixo meu olhar percorrer a colina coberta de neve, que desce até a lagoa repleta de icebergs. Na frente do cartão, vejo o rosto sorridente do meu pai — uma das poucas boas fotos que tenho dele. Viro o cartão e leio, em silêncio, meu poema favorito sobre luto:

“Não fique junto ao meu túmulo chorando.
Eu não estou lá. Eu não estou dormindo.

Sou mil ventos que sopram.
Sou o brilho dos diamantes na neve.

Sou a luz do sol sobre os campos dourados.
Sou a chuva suave do outono.

Quando você acorda no silêncio da manhã,
Sou o voo apressado dos pássaros em círculos.

Sou as estrelas suaves que brilham à noite.

Não fique junto ao meu túmulo chorando;
Eu não estou lá. Eu não morri.”

Descendo a trilha, sinto-me vulnerável e, ao mesmo tempo, em paz. A lagoa está à vista, e o som das minhas botas na neve se torna quase uma música, algo terapêutico. Sinto a força desse lugar me atravessar. O ar gelado preenche meus pulmões. Meu cérebro borbulha com os versos do poema: “Mil ventos que sopram. O brilho dos diamantes na neve. Ele não está lá. Ele não morreu”.

Sim, eu queria espalhar as cinzas do meu pai aqui, na minha grande viagem à Antártica. Como muitos, queria homenageá-lo dessa forma, com esse ritual. Mas, de certa forma, sinto que a missão já foi cumprida. Estou aqui, neste lugar especial, pensando nele. E ainda tenho muitos dias pela frente.

Talvez faça mais sentido espalhar as cinzas perto de casa, no lugar onde ele viveu. Talvez essa seja a melhor escolha. Não tenho certeza. Mas sei que, no fim das contas, isso provavelmente não importa. O que realmente importa é lembrar, mais uma vez, que ele continua comigo — hoje e sempre.

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Via CNN

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