O Dia D completa 80 anos nesta quinta-feira, 6, e até hoje é lembrado como o dia em que o mundo começou a se livrar do regime nazista. Naquele 6 de junho de 1944, depois de pelo menos dois anos de estudo para definir a melhor área, tropas aliadas invadiram a região da Normandia, no noroeste da França, A iniciativa deu início à vitória dos aliados na Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Foi considerada a operação mais importante da história.
O maior defensor desse desembarque foi o primeiro-ministro do Reino Unido, Winston Churchill (1874-1965), que passou anos em encontros com seu colega e amigo Franklin Delano Roosevelt (1882-1945), presidente dos Estados Unidos (EUA), implorando para que os norte-americanos entrassem na guerra.
No momento em que forças dos EUA, do Reino Unido e do Canadá entravam pelo ar e pelo oceano no litoral francês, o líder britânico afirmou, em mais um de seus discursos solenes: “Este não é o fim do começo, mas é o começo do fim”, em alusão à guerra então travada.
Figura peculiar, corpo volumoso e com um charuto como grande companheiro, Churchill tinha como um dos objetivos aliviar também o sofrimento do Reino Unido. O país foi o único da aliança na Europa a não ficar sob o jugo nazista. Resistiu a cerca de 28 mil bombardeios por mais de um ano. Mais do que isso, Churchill acreditava que a derrota nazista salvaria a humanidade de um período de trevas e opressão.
“Lutaremos nas praias, lutaremos nos terrenos de desembarque, lutaremos nos campos e nas ruas, lutaremos nas colinas; nunca nos renderemos”, disse Churchill, em histórico discurso no Parlamento do Reino Unido, em 4 de junho de 1940.
Divergências posteriores à guerra
Desde então, a tal almejada paz mundial se insinuou algumas vezes, mas o mundo teve períodos de retrocesso. O atual momento, inclusive, retrata um contexto que, depois do fim da Guerra Fria (1947-1991), instaurada logo depois da derrota alemã (1945), parecia ter sido superado.
Mas a Rússia, a partir dos anos 2000, assumiu o papel da antiga União Soviética (URSS) e se tornou antagônica aos EUA. A China, também sem alinhamento com os norte-americanos, alcançou protagonismo em termos comerciais e militares. A tensão, então, não deixou de existir. Só ganhou novos contornos.
O presidente da Rússia, Vladimir Putin, nem foi convidado para a cerimônia que comemorará os 80 anos da data. Será realizada na Praia de Omaha, um dos palcos da entrada dos aliados.
“Não haverá delegação russa”, comunicou o governo francês, comandado por Emmanuel Macron. O motivo é o fato de a Rússia ter invadido a Ucrânia, em 2022, por esta ter a intenção de aderir à Organização do Tratado do Atlântico Norte). A ação russa provocou sanções ocidentais ao país.
“As condições não estão reunidas dada a guerra de agressão que a Rússia trava contra a Ucrânia e que se intensificou ainda mais nas últimas semanas.”
Na opinião do historiador João Daniel Almeida. do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da PUC-RJ, o Dia D tem uma repercussão simbólica importante. Justamente por evidenciar o paradoxo entre o momento da aliança e o que veio depois.
“Sem a União Soviética (URSS) não haveria um Dia D”, afirma o historiador a Oeste. “O ataque na Normandia é uma demanda da Rússia (antes URSS) para que a Alemanha passasse a ter uma guerra em duas frentes. Em vez de os aliados fortalecerem a união, depois da Segunda Guerra acabaram por gerar inclusive uma hostilidade mútua.”
Além de Churchill, o ditador soviético Joseph Stalin (1878-1953), também era um defensor da invasão da Normandia. Stalin cobrava uma ação direta dos EUA e do Reino Unido para que entrassem de maneira decisiva contra as forças alemãs na Europa.
Os EUA de Roosevelt vinham adiando uma entrada, inclusive porque o presidente norte-americano lutava contra a resistência dos isolacionistas no Congresso. Frio e calculista, Roosevelt inclusive só entrou na guerra depois do ataque japonês à base norte-americana de Pearl Harbour, no Oceano Pacífico, quando finalmente encontrou um motivo concreto para convencer os contrários.
Para os aliados, seria importante livrar a França, então comandada pelo general Philippe Petáin (1856-1951), submisso aos nazistas. Petáin chefiava o governo colaboracionista de Vichy, estabelecido na cidade que tem esse nome. Roosevelt sabia da importância de uma operação na Europa, mas aguardou o momento que considerou adequado.
Com a invasão, os aliados criaram ainda outra frente de peso para sobrecarregar o já desgastado exército alemão. Na frente soviética, os nazistas estavam sendo rechaçados, principalmente depois da derrota na batalha de Stalingrado (1942-1943).
A entrada na Normandia foi concebida a partir de 1943, na Conferência de Teerã. Apesar de ter sido a terceira reunião entre as potências aliadas, a conferência foi a primeira a reunir os líderes dos três países que encabeçavam a guerra contra a Alemanha: Churchill, Roosevelt e Stalin.
Churchill, outrora defensor de uma entrada aliada pelos Bálcãs, passou meses, com ansiedade, a chamar a região de “baixo ventre macio”. Era uma alusão à maior facilidade de penetração dos aliados na Europa, a partir daquelas cinco praias na costa francesa (com os codinomes Omaha, Gold, Juno, Sword e Utah), entre a cidade de Cherbourg, a leste, e Le Havre, a oeste.
E naquele dia 6, o discurso “Lutaremos nas praias”, de Churchill, foi finalmente colocado em prática, com 156 mil soldados aliados, 50 mil (1 mil tanques, entre eles), cerca de 7 mil veículos marinhos e mais de 11 mil aviões.
Muitas perdas nos combates
Nas semanas seguintes, ingressaram para os combates forças tchecoslovacas, gregas, polonesas e holandesas. Países incluídos no Reino Unido deram suporte aéreo, por meio da Real Força Aérea Australiana e da Real Força Aérea da Nova Zelândia. Atuou também a Marinha Real Norueguesa.
Os combates foram pesados. Os alemães, comandados pelo marechal Erwin Rommel, se posicionaram com cinco divisões de infantaria, uma divisão aerotransportada e uma divisão de tanques terrestres pela costa da Normandia e tinha uma posição vantajosa. As forças alemãs, porém, não sabiam exatamente de onde viria o ataque. E não esperavam por um ataque naval e aéreo tão intenso.
Os nazistas acreditaram em uma manobra dos aliados, que simularam a presença de tropas em Kent, no Reino Unido. A localidade estava de frente para a francesa Calais, do outro lado do Atlântico. Isso induziu os alemães a desviarem as atenções para Calais, o que os enfraqueceu na defesa das cinco praias da Normandia.
“A maior resistência alemã se deu nos dias subsequentes, à medida que os aliados avançavam, e foi feroz”, conta o historiador Marcos Guterman, em entrevista ao portal da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.
Foi difícil para os aliados unirem as bases de todas as praias, em função das respostas alemãs. Isso só ocorreu cinco dias depois, a custa de muitas mortes. Somente no Dia D, as forças aliadas sofreram mais de 10 mil perdas: britânicos e canadenses perderam 3,7 mil pessoas; os EUA, 6 mil. Já os que morreram na defesa da Alemanha estão entre 4 mil e 9 mil combatentes, de acordo com o Museu da Memória do Holocausto, nos EUA.
Apenas no dia 25 de julho de 1944, as tropas aliadas superaram as barreiras na cidade de São Lo. Começaram a adentrar em território francês, até a libertação de Paris, quando o generais Charles De Gaulle (1890-1970) e Philippe Leclerc (1902-1947) avançaram, em meados de agosto, pela capital, com a 2ª divisão blindada. O governador alemão, Dietrich von Choltitz, então declarou rendição.
Rusgas silenciosas, no entanto, fizeram do Dia D um dia decisivo também para as divergências que impediram a humanidade de encontrar a paz permanente. Estas apareceram na própria Conferência de Teerã, quando as controvérsias sobre a divisão da Europa se mostraram, mas foram deixadas de lado pelos três líderes. Cada um deles pensou que obteria seus objetivos depois da vitória.
O Dia D, neste sentido, ocorreu, segundo o professor Guterman, “em meio aos sinais cada vez mais evidentes, ainda antes do fim dos conflitos, de que haveria uma guerra fria entre norte-americanos e soviéticos, com o envolvimento de suas respectivas esferas de influência.”
Desde o Dia D, ocorreram a Guerra Fria (1947-1991), o surgimento de Israel (1948), a Revolução Chinesa (1949), a Guerra da Coreia (1950-1953), as guerras no Oriente Médio, o fim da URSS (1991), entre momentos de dor e de esperança, nos 29.220 dias que vieram depois. Mas, pelo menos, vieram.