Em programa da emissora GloboNews, a jornalista Eliane Cantanhêde analisava em tom ameno a dificuldade que o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), segue impondo à rede social Twitter/X, recusando-se a suspender o banimento oficial da plataforma no Brasil. A própria jornalista, que mês passado exaltava no jornal O Estado de S. Paulo o “protagonismo do STF” na defesa da democracia e do meio ambiente no país, disse não entender perfeitamente o porquê de Moraes estender essa situação esdrúxula.
Eis que então ela levantou ao vivo uma hipótese inusitada: a de que Moraes, na verdade, estaria, vejam só, “ganhando tempo” com o objetivo de “garantir as eleições” — em outras palavras, “garantir” que as vozes “extremistas e antidemocráticas” que desfrutariam de vida livre para disseminar seus conteúdos falsos no ambiente “fascista” do Twitter/X não mobilizassem a opinião pública e afetassem as eleições municipais. Esse, segundo Cantanhêde, seria o diagnóstico dentro dos círculos do próprio STF.
O comentário de Cantanhêde passou por um comentário normal. Parece que ela estava a discutir receitas de culinária. Detenhamo-nos devidamente nele, ao contrário, e veremos que, em sendo verdadeira a hipótese por ela levantada, o ministro Alexandre de Moraes, mandando mais uma vez às favas as bases estritamente jurídicas e impessoais em que um juiz se deveria fundamentar para tomar decisões, estaria avaliando as “conveniências políticas” para se estender em uma decisão que já não teria mais cabimento.
Em outras palavras, o Twitter/X já poderia estar operando se ele agisse como juiz, mas, como ele está muito longe de ser apenas um ministro do STF e guardião constitucional, sendo também um defensor ativo e zeloso da “democracia”, ele deve manter a situação por mais tempo para que as pessoas não possam se expressar politicamente por meio do Twitter/X nas eleições deste ano. Com que objetivo? Só poderia ser o de aumentar as chances de as pessoas votarem como ele gostaria que elas votassem. Um regime político-institucional em que tal coisa é possível deveria ser visto, no mínimo, como um tipo muito exótico de democracia, se ainda pretendêssemos manter essa designação.
Ainda sobre o STF e a democracia
Entretanto, uma analista dizer isso ao vivo na TV não causa espécie imediata. A anestesia social segue poderosa. Enquanto isso, o presidente do STF, Luiz Roberto Barroso, afirma o desejo de deixar como “legado” de seu mandato a total “recivilização do país”, o que passaria por aliviar “pontos de tensão”, encerrando, por exemplo, inquéritos como o das fake news conduzido pelo próprio Alexandre de Moraes. Não obstante, ele mantém que as atitudes aberrantes do STF foram providenciais para conter uma ameaça de extrema direita no Brasil.
Aliviar a tensão e buscar a redemocratização foi exatamente o objetivo declarado pela Lei da Anistia, aprovada em 1979, que “passava uma borracha” nos tensionamentos do regime militar brasileiro e, na prática, transformou em cidadãos livres de plenos direitos os personagens envolvidos no período, fossem arautos do regime ou seus opositores armados. Contudo, embora isso livrasse todos os culpados de arbitrariedades de eventuais punições, havia uma promessa clara por parte dos governos Geisel e Figueiredo de que o sistema de autoritarismo militar estava programado para se encerrar.
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Barroso não promete isso. O que ele quer é uma mera “ suavização” de ânimos sem qualquer impacto estrutural. Não se livrariam os julgados do 8 de janeiro do tratamento draconiano que receberam, não se reverteriam os desdobramentos produzidos no Tribunal Superior Eleitoral, e o mais importante: o poder dos juristocratas seguiria o mesmo, aliviando ou endurecendo a situação do país de acordo com suas vontades soberanas e iluminadas e não submetido aos ditames impessoais da lei.
É como se, nos anos 1980, os militares dissessem que iriam sossegar e ficar de olho, mas mantendo a advertência de que as regras do jogo seriam as deles e, a qualquer momento, se sentissem que as coisas estariam subversivas demais, eles poderiam retomar as medidas salvadoras. “Temos o poder, nós mandamos, mas vamos assistir enquanto vocês brincam um pouquinho no playground.”
Cabe ao STF civilizar-se, assimilar os limites de seu papel na sociedade brasileira e em seu ordenamento institucional, antes de querer determinar o que será do Brasil. Enquanto seus expoentes vomitarem asneiras como a de que lhes compete civilizar o país e combater reacionários, isso não terá acontecido. O que continuaremos tendo será uma “democracia” que só funciona quando convém aos “democratas”, os ilustres defensores de sua essência, que se consideram tão democratas que podem suspender a democracia quando acham que as pessoas em geral não estão tão bem treinadas para serem democratas quanto eles.