À primeira vista, Xinhui parece um distrito tranquilo e comum de uma cidade de terceiro escalão na China. Mas, todo ano, durante o outono e o inverno, suas ruas são tomadas por um aroma único que revela tanto sua história milenar quanto um futuro promissor: o perfume das cascas de tangerina secando ao sol, conhecidas como chenpi.
Para os moradores, esse cheiro é sinônimo de ouro. Afinal, a palavra tangerina no dialeto cantonês, falado localmente, tem a mesma pronúncia de ouro: gam. Assim como o precioso metal, algumas dessas cascas podem atingir valores exorbitantes.
Xinhui está localizada no lado leste de Jiangmen, uma cidade da província de Guangdong, no sul da China. Lá, fileiras de árvores, fábricas simples e fazendas ladeiam modernas rodovias. De vez em quando, um arranha-céu reluzente surge no horizonte, simbolizando o crescimento econômico da região.
“Esse é o Jiangmen Wanda Plaza, o edifício mais alto de Jiangmen”, diz Zhou Zhiwei, um morador do distrito, enquanto dirige seu Porsche branco e exibe a cidade a seu amigo, o chef Li Chi Wai.
“Claro, não se compara aos arranha-céus de Hong Kong, mas ainda assim impressiona — quase 200 metros de altura. E veja essas vias expressas bem pavimentadas. Xinhui se desenvolveu muito.”
O sucesso da cidade está intimamente ligado às suas cascas de tangerina.
Embora tangerinas possam ser cultivadas em outras regiões, apenas as que são colhidas em Xinhui — mais especificamente, suas cascas — têm o mesmo valor que ouro.
Quais são os benefícios das cascas para a saúde?
Os benefícios das cascas de tangerina envelhecidas, uma erva medicinal tradicional chinesa, são documentados desde a dinastia Song do Sul (1127-1279).
“Xinhui está na confluência dos rios Xijiang e Tanjiang, no coração do Delta do Rio das Pérolas (província de Guangdong)”, explica Li, chef executivo do restaurante The Legacy House, estrelado pelo Guia Michelin e localizado no hotel Rosewood Hong Kong.
Li deixou Xinhui na adolescência para viver em Hong Kong. Após décadas trabalhando como chef de culinária chinesa na movimentada cidade, ele redescobriu o respeito e a paixão pelos produtos de sua terra natal.
“A composição da água e do solo torna Xinhui um lugar ideal para o cultivo de tangerinas”, ele conta. “Por isso, acredita-se que as cascas daqui sejam mais ricas e tenham maior concentração de micronutrientes.”
As cascas de tangerina só podem ser chamadas de chenpi (cascas envelhecidas, conhecidas cientificamente como Citri Reticulatae Pericarpium) se forem secas ao sol todos os anos, no outono e no inverno, consecutivamente, por pelo menos três anos. Nos demais períodos do ano, elas são cuidadosamente armazenadas.
Existem quatro tipos principais de cascas de tangerina: cascas verdes (colhidas antes de amadurecer); cascas claras ou de tangerinas semi-maduras (colhidas em novembro); cascas vermelhas grandes (de tangerinas totalmente maduras em dezembro); e cascas vermelhas grandes de pós-inverno (colhidas após o inverno, quando as tangerinas têm maior teor de açúcar).
Diz-se que o chenpi já foi utilizado em pratos servidos a imperadores e imperatrizes na Cidade Proibida, em Pequim. Hoje, o ingrediente é amplamente encontrado em prescrições de medicina tradicional e na culinária cotidiana, especialmente no sul da China.
Cada tipo e idade de chenpi tem usos medicinais distintos, mas, na medicina tradicional chinesa, acredita-se que ele fortaleça o baço, auxilie na digestão e melhore o sistema respiratório.
Pesquisas modernas indicam que o chenpi possui antioxidantes, flavonoides (componentes anticancerígenos) e potencial para estabilizar a pressão arterial e prevenir a obesidade.
E, como um bom vinho, quanto mais velho o chenpi, mais valioso ele se torna.
Assim como Li, Zhou também se mudou brevemente para Hong Kong nos anos 1980 em busca de melhores oportunidades. No entanto, ao perceber o potencial das cascas de tangerina, retornou a Xinhui em 1996. Hoje, é uma figura central no setor: avaliador certificado de chenpi, vice-presidente da Associação da Indústria de Chenpi de Xinhui e um produtor orgulhoso.
“Meu pai e meu avô cultivavam árvores de tangerina. Quando comecei no comércio de cascas envelhecidas, as pessoas nos olhavam com desdém, nos chamando de caipiras ou vendedores de ‘sucata’. Mas eu sabia que isso tinha futuro”, diz Zhou.
E ele estava certo. Nas últimas duas décadas, a indústria do chenpi prosperou.
Em 2023, um quilo de cascas secas produzidas em 1968 foi leiloado em Hong Kong por HKD 75.000 (R$ 56,8 mil). No mesmo ano, Xinhui se tornou o primeiro e único distrito de Jiangmen a alcançar a marca de 100 bilhões de yuans (R$ 81,3 bilhões), respondendo por cerca de um quarto do PIB da cidade. A indústria do *chenpi* foi avaliada em RMB 23 bilhões (R$ 18,8 bilhões) no ano passado.
“A cidade se desenvolveu muito graças às cascas de tangerina”, diz Zhou, que agora produz e adquire cerca de 163 toneladas de *chenpi* anualmente.
Revolucionando o mercado
O chef Li não está em Xinhui apenas para rever seu velho amigo Zhou. Ele tem viajado regularmente entre Hong Kong e Xinhui nos últimos anos para pesquisar e selecionar ingredientes para seu banquete anual de cascas de tangerina envelhecidas no The Legacy House, em Hong Kong.
Em Xinhui, o chenpi é amplamente utilizado em pratos como peixe ao vapor com óleo e pó de chenpi, pato ensopado com sanbaoza (um feixe de chenpi e azeitonas salgadas amarrado com capim) e até em vinhos, bebidas e doces.
“É um ingrediente essencial na culinária cantonesa — tão comum que às vezes esquecemos seu valor. Quero elevá-lo refinando a forma como o enxergamos”, diz Li, que presta atenção especial ao momento da colheita e à idade do chenpi ao selecioná-lo.
“Se terroir e idade importam para o vinho, por que não para as tangerinas?”.
Após experimentar centenas de cascas de tangerina, Li lançou seu primeiro banquete temático no final de 2022, oferecendo aos clientes um livreto para aprenderem sobre o ingrediente.
O menu de sete pratos harmonizado com chá começava com uma entrada tripla — bolinhos de peixe moído, almôndegas de carne frita e vieiras —, todos preparados com diferentes formas de chenpi de 10 anos, originários do distrito de Tianma, em Xinhui. O banquete terminava com uma sobremesa de arroz glutinoso recheado dentro de uma tangerina verde jovem.
Em dezembro de 2024, um novo menu de “Gastronomia com Casca de Tangerina Envelhecida” foi lançado, com cascas de seis a 50 anos de idade, vindas de várias fazendas de Xinhui.
O destaque do menu, que custa HKD 2.280 (R$ 1.732) por pessoa, é uma sopa espessa de bexiga natatória de peixe com cabeça e pata de cordeiro, preparada com cascas de tangerina de mais de 50 anos.
“Essa sopa tradicional cantonesa é rara hoje em dia, quase ninguém a prepara. Achamos que ela é perfeita para destacar o chenpi de 50 anos, que possui um sabor profundo, parecido com madeira de agar, além de ser raro e extremamente rico em aroma e sabor”, afirma o chef.
A preparação é trabalhosa: a cabeça e as patas do cordeiro são cozidas lentamente com chenpi, cana-de-açúcar, castanhas-d’água e gengibre até a carne ficar macia.
Em seguida, são levadas para um caldo feito com frango maturado, ossos de porco, carnes vermelhas e mais chenpi, cozido por mais de seis horas, com ingredientes adicionais como bexiga natatória de peixe, frango desfiado, cogumelos, vieiras secas e mais chenpi previamente hidratado.
O resultado é uma sopa rica em colágeno e repleta de sabores intensos.
“Elas são para o dote da minha filha”
Atualmente, 500 gramas de chenpi envelhecido por 50 anos custam cerca de HKD 75.000 (aproximadamente R$ 56,7 mil), justificando o preço do banquete do chef.
Ao ouvir Li falar sobre a inclusão das cascas envelhecidas em sua sopa, Zhou se anima. “Eu também tenho chenpi de 50 anos, compradas quando um dos departamentos de produção do governo foi fechado”, diz ele. “Quer ver?”
Nos guiando pelos escritórios de sua empresa, ele nos leva até uma série de unidades de armazenamento cheias de caixas etiquetadas. Na última sala, ele retira um saco de cascas de tangerina.
“Essas valem cerca de RMB 100.000 (R$ 80,7 mil) por catty atualmente. Essa coluna toda poderia ser vendida por cerca de RMB 3 milhões (R$ 2,4 milhões),” explica, referindo-se à unidade tradicional chinesa de peso, que equivale a 500 gramas. “Mas elas não estão à venda — são para o dote da minha filha.”
No entanto, Li enfatiza que seu menu, disponível até o final de fevereiro, vai além da idade e do preço do chenpi. Ele espera que os clientes apreciem o ingrediente para além de seus benefícios à saúde.
“As pessoas geralmente acham que todo chenpi tem o mesmo gosto, mas na verdade cada um tem características únicas”, diz Li.
Por exemplo, no filé de garoupa assada do chef, ele utiliza uma casca de seis anos. Colhidas e secas após o inverno, essas cascas preservam mais doçura do açúcar natural da fruta, adicionando um leve sabor de açúcar cristalizado que harmoniza com o peixe.
Já o rolinho de lagosta envolto em bambu é preparado com cascas de tangerina de 13 anos, provenientes de Meijiang, uma região agrícola ribeirinha no norte de Xinhui. Lá, o solo e a proximidade com o delta do rio conferem às cascas uma leve nota de sabor de ostra, complementando perfeitamente o prato.
Ao combinar diferentes chenpi com o perfil de sabor de cada prato, a abordagem de Li vai além dos métodos tradicionais, que geralmente só indicam a idade das cascas sem mais informações. O banquete transforma-se em uma jornada educativa sobre o chenpi.
Um futuro promissor para Xinhui
Às 15h, a dupla segue para a fazenda de Zhou em Shuangshuizhen, um condado de Xinhui, onde trabalhadores estão recolhendo centenas de cascas jovens após horas secando sob o suave sol do outono. Outros classificam as cascas em diferentes categorias.
As tangerinas, destinadas à produção de chenpi de valor acessível para consumo em massa, ainda estão verdes.
Zhou pega algumas frutas e as corta cuidadosamente. Ele remove a polpa, deixando as cascas intactas, com o formato de uma flor de três pétalas.
“Veja como Zhou corta longe do caule,” explica Li. “O pequeno talo é importante, pois indica que as frutas foram colhidas diretamente da árvore. Se caírem sozinhas, ficam com um amassado no lugar do talo, sendo consideradas menos desejáveis.”
A polpa das tangerinas ainda não é doce. No passado, era descartada, pois apenas as cascas tinham valor. Mas isso também mudou.
“A polpa é usada para fabricar enzimas e produtos de saúde,” comenta Li.
Zhou está otimista quanto ao futuro da indústria. “Hoje em dia, há mais jovens empreendedores explorando oportunidades inovadoras de negócios,” diz ele.
“Acredito que este é o caminho para Xinhui — aprofundar nossa capacidade de manufatura e diversificar o desenvolvimento de produtos com chenpi.”
Xinhui pode não ser uma cidade turística amplamente desenvolvida, mas os visitantes podem aproveitar atrações como a histórica vila de Chakeng, conhecida como a “terra natal do chenpi”.
Do outono em diante, milhares de cascas brancas e douradas enchem a praça principal.
A poucos passos da vila de Chakeng está a Vila Chenpi, um marco cultural e recreativo relativamente novo que atende a todas as necessidades relacionadas às tangerinas.
O café local vende sorvete e café de tangerina, decorados com pó de casca, ora doce, ora salgado. Lojas oferecem uma ampla variedade de chenpi e lembranças comestíveis. Restaurantes como o Hengyi Shao E servem o famoso ganso assado de Xinhui, coberto com um molho secreto de *chenpi* enquanto é grelhado sobre fogo de lenha.
Enquanto passamos pelas fileiras de plantações de tangerinas a caminho da estação ferroviária de alta velocidade de Jiangmen, rumo a Hong Kong, Li reflete sobre sua infância em Xinhui.
“Eu me lembro das cordas de chenpi penduradas acima de cada fogão de cozinha. Era tão comum que eu nem ligava. Como uma criança pobre e faminta, eu roubava tangerinas das plantações no caminho para a escola e jogava fora as cascas. Quem diria que essas cascas se tornariam tão valiosas? Eu era tão desperdiçador naquela época,” ele diz com um sorriso.
Após décadas longe de sua terra natal, a apreciação de Li por esse ingrediente outrora humilde vai além do orgulho ou do valor monetário que ele possui.
“A amargura não é comum na maioria das culturas culinárias… mas a amargura de um bom chenpi, quando bem trabalhada, é um gosto delicioso que se dissolve rapidamente — deixando um doce sabor residual,” explica Li, que espera que suas criações ajudem a apresentar esse antigo ingrediente chinês a um público mais amplo e internacional.
“Como diz um velho provérbio chinês, ‘a amargura e a doçura são uma só.’ Entender a importância da amargura na vida é essencial para realmente apreciar e saborear a doçura.”
Para ele, essa é a verdadeira beleza do chenpi.
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