Mais de 5 mil ligações e mensagens bombardearam o telefone de Marzieh Hamidi dias depois que a campeã afegã de taekwondo ousou sugerir que o time masculino de críquete do país não a representava — uma atleta forçada ao exílio pela proibição do esporte feminino por parte do Talibã.
“Nós temos seu endereço, e compartilharemos com quem pagar mais”, escreveram para ela. “Eu vou cortar sua cabeça fora“, ameaçou outro. “Onde você quer que eu te estupre?”, questionou mais um criminoso.
Perseguida por ameaças de morte em Paris, onde a refugiada de 21 anos agora vive sob proteção policial, Hamidi se tornou uma defensora da igualdade de direitos para as mulheres afegãs. É uma campanha travada desproporcionalmente pelas atletas femininas do país.
“O taekwondo me dá mais identidade como mulher, de me sentir mais poderosa na sociedade”, disse ela à CNN. “No Afeganistão, mulheres não têm permissão para ser mulheres. Elas não existem.”
Sua compatriota, Manizha Talash, foi desclassificada da Olimpíada de Paris após vestir uma capa com a mensagem “Mulheres Afegãs Livres” durante a prova de breakdance. Ela foi excluída da competição por fazer um “protesto político”.
“Com essas três palavras, eu falei com o mundo tudo e pedi, por favor, que façam alguma ação prática pelas mulheres afegãs. Nós não queremos nada especial deste mundo. Queremos apenas direitos humanos básicos”, disse Manizha à CNN.
A velocista Kimia Yousofi, porta-bandeira do país nos Jogos Olímpicos de Tóquio em 2021, escapou de uma desclassificação semelhante ao exibir um bilhete escrito à mão após uma corrida, com os dizeres: “Educação, Esporte, Nossos Direitos”.
Enquanto equipes masculinas do Afeganistão são em grande parte livres para competir internacionalmente, as mulheres afegãs são impedidas de praticar esportes, forçadas a competir sem apoio oficial ou se exilarem para representar equipes de refugiados.
Hamidi relatou à CNN como foi ficar cara a cara com a equipe masculina do Afeganistão enquanto competia como refugiada no Mundial de Taekwondo, ano passado, no Azerbaijão.
Impedida de representar seu próprio país, ela disse que foi tratada como uma estrangeira por seus ex-companheiros de equipe.
“Eles são o time do Talibã para mim, não o time do Afeganistão”, disse ela, em uma acusação semelhante à que fez contra a seleção afegã de críquete, ao pedir para que as delegações do país fossem banidas da Olimpíada, como aconteceu com a África do Sul durante o apartheid.
“Ao mesmo tempo em que eles estão vindo (a competições internacionais), o Talibã está matando muitas mulheres no Afeganistão”, disse ela.
A CNN procurou a Confederação de Críquete do Afeganistão e a Federação de Taekwondo para comentar as acusações, mas não obteve respostas.
Apesar da situação horrível das mulheres no Afeganistão, os times masculinos afegãos, como a popular seleção de críquete, são liberados para competir em eventos internacionais.
O críquete é amplamente seguido no Afeganistão, e a seleção do país — cujo emblema ainda exibe a bandeira tricolor do governo deposto pelo Talibã — tem sido uma fonte de orgulho nacional para muitos, por mais que o Talibã tenha impedido mulheres de praticar o esporte.
Hamidi afirmou à CNN que a seleção masculina de críquete “não representa as mulheres do Afeganistão”.
Numa entrevista como essa, há alguns meses, foi a partir de comentários assim, em que acusa atletas masculinos de críquete do Afeganistão de “normalizar” o Talibã, que partiu a onda de ódio on-line contra a lutadora.
Estrelas femininas do esporte têm sido alvos fáceis para simpatizantes do Talibã, especialmente para aqueles da diáspora do país.
Além das opiniões políticas, “eles estão criticando Marzieh Hamidi por ser uma mulher, por falar em público e por se vestir, vamos dizer assim, de uma maneiro ocidental”, opinou Ines Davau, advogada de Hamidi, à CNN.
Após chegar à França, quando da queda do governo afegão em 2021, a lutadora teve que construir uma nova vida, ensombrada pelos temores por sua família e pelas represálias do Talibã por sua resistência ao domínio exercido sobre os direitos das mulheres afegãs.
No Instagram mas também pessoalmente, ela irradia uma sede desafiadora pela vida e seus sonhos de se tornar uma atleta olímpica.
Mas, implacavelmente assediada por ameaças de assassinato e estupro, Hamidi agora vive sob constante proteção policial. Simpatizantes do Talibã roubaram dela qualquer aparência de uma vida normal.
Eles têm um sistema de relações públicas e possivelmente de vigilância bastante sofisticado que poderia penetrar também em países estrangeiros. Se não houver consequências, se não houver resistência a isto, os misóginos em todo o lado tomarão nota
Richard Bennett, relator especial da ONU para os direitos humanos no Afeganistão
Semanas após as primeiras ameaças, Hamidi ainda recebe mensagens aterrorizantes.
Uma delas veio no começo de outubro, de um usuário no Instagram: “Faltam apenas 3 meses para que eu tenha meu dinheiro, então eu poderei ir diretamente a Paris e lá cortarei a sua cabeça”.
As ligações e mensagens recebidas por Hamidi vieram de números de telefone de toda a Europa, muitas delas escritas em inglês.
Davau, advogada de Hamidi, tenta provar que há um trabalho coordenado por trás desta campanha de ódio.
O Ministério Público de Paris confirmou à CNN que uma investigação foi iniciada para apurar as ameaças, liderada pela agência francesa especializada em crimes de ódio e crimes contra a humanidade.
“Realmente há um chamado para ir no perfil dela no Instagram para insultá-la, intimidá-la, ameaçá-la”, afirma Davau.
Quando recebeu as primeiras ameaças, Hamidi disse que foi como estar de volta a Cabul. Mas, apesar do assédio, sozinha na França, ela não demonstra qualquer sinal de que vai desistir da luta.
“Eles querem nos deixar invisíveis no Afeganistão. Eu quero mostrar a eles que somos fortes”, afirmou Hamidi.