Eugene Richter foi muitas coisas. Formado em Direito e Economia pela Universidade de Bonn, suas principais atuações foram o jornalismo e a política no Parlamento prussiano. Liberal convicto desde os tempos de universitário, defendeu a liberdade individual, o Estado de Direito e o livre comércio, mas se destacou por sua labuta em prol da liberdade de imprensa e, por extensão, de expressão, pois via nelas os princípios mais frágeis ante ideias de base totalitária e sanhas do Estado. É interessante notar como Richter foi esquecido pelos liberais. Digo isso com notada ênfase, pois acredito que já li muito sobre esse assunto, seja pelo meu trabalho como editor de uma editora confessamente liberal, a LVM, seja por interesse íntimo, por ser um conservador-liberal.
A Faro Editorial, sob o selo Avis Rara, publicou Cenas de um futuro socialista: uma distopia sobre a Alemanha escrita em 1890, o livro mais recente escrito por Richter, lançado em 1891. O livro é uma preciosidade do empenho e entendimento político de Richter e, por muitos motivos, merece os louros que, até o momento, me parece terem sido negligenciados. A obra foi escrita em 1890 e sua primeira edição data do início de 1891, portanto, distante 26 anos da primeira grande revolução socialista que tentaria — e conseguiria — implementar um sistema político comunista, a Revolução Bolchevique de 1917. Sem nenhum pedantismo, podemos afirmar que Richter conseguiu — a partir de um esforço imaginativo, gestado em observações e em uma compreensão clara da ideologia socialista — prever os principais elementos de uma sociedade comunista que, dali uns 30 anos, começariam aflorar no mundo como um todo.
Escrito em forma de diário, Ernest, o protagonista da trama, narra-nos o advento de uma sociedade comunista na Alemanha, os eventos relatados ocorrem imediatamente após a tomada do poder pelos marxistas — assim ele os descreve. O livro tem duas bases que sustentam a narrativa como um todo. Na parte superior do roteiro, está a intenção aberta do autor de narrar como se daria e quais seriam os efeitos da prática real da ideologia comunista na vida de Estado e na comunidade alemã. As bases, contudo, são o drama da desintegração da vida familiar e individual sob o regime vermelho, e o desencanto seguido de um remorso daqueles que apoiaram a revolução comunista num primeiro instante. Em todo texto, essas bases dão o tom; capítulo após capítulo, temos episódios que expõem a construção do Estado da foice e do martelo sobre o drama da desintegração da vida comum, e da desilusão crescente de Ernest.
Nessa estrutura, está o brilhantismo do texto de Richter, pois, nas distopias famosas que viriam depois, tal como Nós (1924), Admirável Mundo Novo (1932), Kallocaína (1940) e 1984 (1949) — para citarmos algumas —, além dos autores já terem certos elementos históricos necessários para a crítica ficcional típica das distopias, os textos citados não sugerem, à primeira vista, como fundamento roteirístico, os dramas essenciais gestados pela ideologia vermelha na vida familiar dos indivíduos, bem como a desilusão dos apoiadores iniciais, o que na obra de Richter são claramente os pontos altos da crítica do alemão.
Todas as grandes obras distópicas, autobiografias de pessoas que viveram sob os regimes comunistas, além de textos críticos em geral, tocam sim nesses temas, é óbvio, mas Richter tem uma genialidade diferente, pois escreveu sobre isso num drama ficcional antes que qualquer sociedade comunista estabelecida pudesse nos dar tais elementos históricos a serem percebidos e analisados. Em Cenas de um futuro socialista, tal elemento da desintegração familiar por um regime socialista, e a desilusão gradual dos apoiadores, era tão somente especulações que se tornariam reais à medida que o tempo passava e as ideias socialistas se propagavam.
Mas tal vidência política de Richter vai além. Na obra, ele destaca como as ações econômicas esperadas de uma comunidade comunista necessariamente, à medida que são implementadas, demandam crescentes forças policiais para serem respeitadas e praticadas. Expõe-nos como o igualitarismo econômico gera não só empobrecimento bruto da sociedade, como o desinteresse e a vadiagem profissional; não encontrando mais estímulo financeiro para melhorar e materiais adequados para bem desenvolver seu trabalho, o trabalhador tende a se adequar ao pior padrão de serviço possível. Mostra-nos também como a fuga de capital financeiro, intelectual e braçal, sob um regime fechado, gradualmente se torna o tom geral daqueles que se veem sem liberdade, e como o Estado tende a punir tal emigração com força de morte. Destaca ainda como o Estado empoderado tende a suspender cada vez mais o espaço de intimidade dos indivíduos, isto é, socializando os bens e obrigando a suspensão das liberdades individuais, mostra-nos Richter, inevitavelmente a privacidade de cada pessoa tende a ser corroída pela expansão da sanha estatal de controle social — um dos insights mais fenomenais da obra. E, por fim, o autor descreve-nos como o Estado retroalimenta a consciência de classe na população renovando inimigos imaginários do regime, tirando assim a culpa das costas dos engenheiros políticos do Estado ante os fracassos das ações implementadas, colocando-a em fantasmagóricos capitalistas malvadões que sabotam o regime.
Obviamente, alguns pontos da obra são um tanto quanto problemáticos se comparados ao que aconteceu décadas após o lançamento do livro. Por exemplo, na obra o Parlamento ainda goza da liberdade de oposição aberta contra o governo, o que é contraditório com o ambiente que o próprio autor deu à sociedade que ele descreve. Deve-se questionar como o Estado que pune a emigração, a migração, que padroniza tudo, de vestuário, alimentação até a imprensa, além de punir críticas populares ao regime, como um Estado desses permitiria um Parlamento livre com partido oposicionista e críticas abertas ao poder vigente? Acredito que aqui tenha faltado coerência estrutural à obra, que só se justifica no tear do romance à medida que percebemos que um dos pontos altos do texto se trata da crítica do oposicionista por Hagen no Parlamento ao ministro de governo que queria impor medidas mais restritivas ao país. Para tal discurso acontecer, acredito que tenha pensado Richter, um Parlamento livre, típico das democracias, deveria existir, o que destoou, todavia, de todo o resto do livro.
Apesar desse deslize de roteiro, o que em certa medida é aceitável dado que, naquele instante, Richter escrevia sobre uma sociedade ainda inexistente, o livro manteve os contornos de uma boa obra distópica. Não espere, todavia, um livro com uma supremacia literária, desde o início o autor demonstra que escreveu para criticar políticas socialistas de opositores em um ambiente de debate popular aquecido, por isso o livro deve ser lido não apenas com um olhar de crítico literário, mas antes como uma obra política, um esforço hercúleo de análise filosófica de uma ideologia em sua prática. Como já afirmei repetidamente aqui, a grandeza do texto está na vidência do autor ante uma realidade política ainda inexistente; outro contorno que traz importância à obra é saber quer a própria Alemanha, 58 anos depois do lançamento do livro, em 1949, seria dividida entre Alemanha Oriental e Ocidental, sendo a Oriental uma espécie de prova política de que muito dos, então, insights de Richter, lá em 1890-91, estavam de fato corretos.
Parabéns à editora Faro pela publicação desse esquecido livro, habilmente traduzido pela Roberta Sartori — uma das melhores que temos no país hoje. Eis um texto, caros leitores, que nos dá uma lição preciosa: nem sempre precisamos provar uma determinada política para notar sua ineficácia e malefício. Políticas que, pela simples análise desapaixonada e racional das suas consequências óbvias, evidencia-nos que a sua aplicação seria um desastre político e humanitário, deve ser combatida antes da eclosão de seus ovos. Quantos alemães que viveram no canto oriental não gostariam que os alertas de Richter tivessem sido levados a sério pelos políticos e burocratas que, em 1949, aceitaram ser o brinquedinho dos soviéticos?
Por isso tudo, eu tendo a gostar de ler distopias, elas são muito mais que críticas tolas de ideólogos afetados, elas tendem a ser trabalhos ficcionais de análise da sociedade, o único espaço onde podemos aplicar um “futurismo” frutífero sem maltratar a liberdade alheia e ainda ofertar uma crítica proveitosa a determinadas ideias, e em alguns casos, ao poder vigente. Essa sensação cada vez mais comum de que as distopias estão acontecendo é fruto de um romancista hábil não somente em escrever bem, mas em analisar seus arredores e notar posturas e ideias que poderiam transformar a realidade num ambiente de agressão a princípios e valores fundamentais da humanidade. Eis, por fim, a lição de Richter, aquela distopia que hoje parece absurda, amanhã pode ser realidade; podemos e devemos ler distopias por mera diversão, mas não nos esqueçamos do que elas nos dizem, por segurança.