domingo, novembro 24, 2024
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Como homens comuns se tornam assassinos de judeus

Certa vez, escutando um podcast cujo nome agora me foge, Jordan Peterson indicou um livro interessante à primeira vista; na verdade, ele o recomendou com palavras efusivas, quase que implorando para que seus ouvintes lessem a obra. Pois bem, ele me convenceu, tratava-se de Ordinary men: reserve police battalion 101 and the final solution in Poland, que acaba de ser lançado no Brasil, pela Vide Editorial, sob o nome Homens comuns: o batalhão de polícia da reserva 101 e a solução final na Polônia. Com certeza foi um dos livros que mais me marcaram nos últimos anos.

O autor, Christopher Robert Browning, é um historiador norte-americano, formado na Oberlin College e doutorado pela Universidade de Wisconsin-Madison; seu trabalho acadêmico se desenvolveu todo no âmbito daquilo que ficou convencionado denominar de “Solução Final” dos judeus, o extermínio em massa realizado pelos nazistas alemães. Pelo Homens comuns, Browning recebeu o prêmio National Jewish Book Award, iniciativa de instituições e grupos judaicos que premiam livros que colaboram para a compreensão do povo judeu e da história judaica.

Conversando com alguns amigos que leram o referido livro, quase todos usaram os adjetivos: “impressionante”, “profundo” e “instigante estudo” para classificar a obra; eu, todavia, só consigo pensar no termo “perturbador”. A tese da obra é de que pessoas comuns, que, na sua grande maioria, não têm ideologias, ódios políticos ou religiosos algum, sob determinada pressão e compadrio, são capazes de cometer atos aterrorizantes de assassinatos em massa, de torturar e de matar com requintes de crueldade velhos e crianças sem nenhuma chance de autodefesa. Ao fim, Browning apresenta uma exemplificação mórbida do estudo mais abstrato e psicológico de Gustav Le Bon em Psicologia das multidões — ou, como era conhecido nas edições anteriores, Psicologia das massas. Le Bon mostra-nos como grupos, flexionados por ideias de fundo messiânico e propósitos imediatos, acabam por constranger as consciências individuais afogando-as na mais absurda cegueira consentida.

Bandeira de Israel em Jerusalem | Foto: Shutterstock

Os seguidores de Hitler

Homens comuns versa sobre o Batalhão 101, que atuou, em especial, nas cidades de Józefów e Łomazy, na Polônia. O serviço do batalhão, composto na sua grande maioria de operários comuns de Hamburgo, era o de constranger e prender judeus, e, com o passar do tempo, as ordens evoluíram para o confinamento e envio deles aos campos de concentração até a própria eliminação completa quando os campos já não comportavam mais a entrada de novos prisioneiros. Quando as ordens de Berlim se verteram no derramamento de sangue, os oficiais deram a possibilidade de que os operários-soldados desistissem do “trabalho”, o que apenas 12 deles  fizeram — relata o historiador. E aqui está o ponto alto da obra, mostrar como, mesmo sendo contra o extermínio em si, muitos continuavam nas tarefas do batalhão por se sentirem pressionados pelas ordens dos superiores durante os atos em campo e pela ideia da massa de soldados de que aqueles que desistiam eram covardes e alemães de segunda categoria.

Browning mostra-nos que aquele grupo de operários, homens comuns com empregos e vidas comuns não militarizados, mas feitos militares por força de Estado, não eram todos antissemitas — ou antissemitas radicais que pregavam extermínio em massa. O impulso de extermínio que existia nos setores militantes, burocráticos e políticos do Terceiro Reich não habitava aqueles homens, aponta o historiador. O que faziam durante as suas atuações, faziam por outros fatores, não por radicalismo político ou fidelidade ideológica, faziam por pressão e abafamento da consciência. Num determinado momento, ele relata que dois homens imploraram para serem dispensados de suas funções após verem crianças sendo mortas pelo batalhão. Eles argumentavam que eram pais e que não poderiam seguir com isso. Outro, em uma situação parecida, pediu dispensa aos seus superiores, não só a conseguiu. Mas ainda foi promovido ao chegar na Alemanha.

Leia tmabém: “A perseverança do povo judeu”, artigo de Ana Paula Henkel publicado na Edição 189 da Revista Oeste

Ou seja, sair do batalhão não representava um risco à vida social, familiar e pública dos soldados. Assim, o historiador norte-americano nos mostra que não era nada difícil sair do batalhão. Por vezes, bastava pedir, sem exigência de maiores porquês. Isso se dava por alguns motivos técnicos. Eles não eram militares profissionais, tinham sido dispensados das linhas de ataque e defesa do Exército Nazista por inúmeros fatores, e, não sendo militares, não se exigia deles marcialmente as mesmas regras aplicadas aos soldados oficiais da ativa ou reserva. E aí está o paradoxo, homens comuns, que não ostentavam as crenças genocidas de Hitler, mesmo com a possibilidade de não precisarem levar ao cabo as missões genocidas de seu líder, o faziam de forma grotesca e empenhada.

O livro nos mostra, por fim, que

  • 1. o poder parasitário e hipnotizante das ideologias de massa podem fazer homens comuns se converterem em assassinos contumazes sem maiores motivações além de ordens oficiais e pressões de ambiente, as ideologias impulsionam os poderosos, os poderosos criam ambientes, justificativas e legislações, e os indivíduos se veem amassados e tendentes a obedecer sem raciocinar, suplantando suas consciências em nome do grupo e das ordens;
  • 2. quando trocamos nossas livres consciências e valores por ideologias, criamos uma autojustificação fantasiosa para manter nossos atos sob uma espécie de anestesia moral, mesmo não concordando com certas posturas e ações, e nem com os princípios ideológicos em si mesmos, o que mostra que encontramos na ideologia uma muleta retórica e moral reconfortante ante o mal que fazemos; e
  • 3. grande parte dos atos grotescos dos regimes totalitários são cometidos por pessoas comuns que, se fizerem um exame detido de suas ideias e valores, verão que não correspondem às ações perpetradas por eles.

A pergunta final de Browning é perturbadora: será que eu, caso fosse um homem comum, em 1942, em Hamburgo, após ser convocado para o Batalhão 101, pediria para sair e não sujaria minhas mãos com aquilo que se tornaria o maior extermínio racial da humanidade, ou me manteria nas funções assassinas sob um guarda-chuva retórico vagabundo de que “ordens são para serem cumpridas”(?). Ou ainda, por alguma fidelidade tribal ao grupo e medo da vergonha pública, me acharia justificado na empreitada de matar brutalmente homens e mulheres, velhos e crianças?

O livro obviamente não foi escrito para justificar assassinos do Batalhão 101, mas, sim, para mostrar como ideologias totalitárias são capazes de dobrar facilmente as consciências e os valores humanos para seus propósitos genocidas mesmo quando os indivíduos não acreditam em seus pressupostos. Homens comuns se tornam assassinos bizarros quando o encanto de uma narrativa extremista encontra grupos — ou Estados — dispostos a levarem adiante seu plano de eugenia. Você e eu, caso não reivindiquemos vigorosamente nossas consciências e valores morais, podemos figurar amanhã em algum batalhão de extermínio sob a mais pueril e vagabunda justificativa. Nos dias em que a Europa e Leste Europeu começou a acordar novamente com estrelas de Davi demarcando onde vivem e trabalham judeus, esse livro deveria ser a nossa leitura de cabeceira.

“Não tenho outro país além de Israel”, artigo de Andrea Samuels publicado na Edição 189 da Revista Oeste

Via Revista Oeste

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