Na série Fauda, o protagonista Doron Kabilio (Lior Raz) comanda a Unidade Mista’arvim. Com informações do Mossad, os agentes tentam capturar um terrorista do Hamas conhecido pelo apelido de O Pantera. A história, apesar de romanceada, apresenta muitas situações reais, em que a inteligência de Israel entra em regiões palestinas para neutralizar células terroristas.
Mas nem Lior Raz, também um dos roteiristas, imaginaria as cenas de 7 de outubro de 2023, quando um bando de terroristas munidos com metralhadoras e alguns jipes entraram pelo buraco de uma cerca, em uma das nações com a defesa mais avançada do mundo.
A ação do Hamas, que assassinou cerca de 1,2 mil israelenses e estrangeiros no sul de Israel, além de sequestrar mais de 250 pessoas, foi considerada uma grande falha da inteligência israelense, encabeçada pelo Mossad, cujo significado é O Instituto.
Fundado em 1949, praticamente junto com o Estado de Israel, o serviço, com sede em Tel-Aviv, realizou ações que o levaram a ser considerado referência. Junto com o Mossad, atuam a Aman (inteligência militar) e o Shin Bet (segurança interna).
A brecha diante do ataque dos terroristas foi vista com tal gravidade que levou à renúncia, 10 meses depois, do chefe da inteligência israelense, major general Aharon Haliva.
O chefe das forças armadas, tenente-general Herzi Halevi, e o chefe do Shin Bet, Ronen Bar, também assumiram a responsabilidade depois do ataque. No entanto, permanecem no cargo enquanto a guerra em Gaza prossegue.
Uma obsessão, então, tomou conta do Mossad e de seus parceiros de inteligência: reconquistar a confiança da população, enquanto Israel mergulhava na guerra contra o Hamas e seus aliados Hezbollah e Irã.
Talvez tenha sido a autoconfiança exagerada que fez o Mossad, ainda que com equipamentos modernos, continuar com uma estratégia de defesa mais convencional.
Sabia-se da movimentação do Hamas na região próxima à fronteira, mas as manobras não foram vistas como uma ameaça, conforme afirma Moshik Cohen, cientista que já projetou foguetes e alguns dos principais sistemas de defesa antimísseis de Israel.
“Por 25 anos, estive na vanguarda da defesa, desde a tripulação de combate até a ciência de foguetes e o empreendedorismo”, afirma Cohen em uma rede social. “Mas o dia 7 de outubro evidenciou uma dura realidade: mesmo a tecnologia de ponta de Israel não é invencível contra as ameaças de hoje. À medida que entramos na era dos sistemas autônomos e das guerras definidas por software, as estratégias de defesa tradicionais estão sendo superadas por táticas assimétricas.”
Como exemplo, ele cita, além da estratégia do Hamas de neutralizar o sistema de rastreamento de Israel, a ocorrência de eventos recentes, desde ataques de drones do Hezbollah e dos houthis, este último em Tel-Aviv, em 19 de julho.
“É hora de repensar radicalmente nossa abordagem em relação à segurança em um mundo onde algoritmos e autonomia estão reformulando as regras de engajamento.”
Cohen, diante das novas diretrizes, criou uma startup, a Maisense, e acertou com o governo o fornecimento de um sistema autônomo de defesa de mísseis, o NovaGuard, para a Israel Aerospace Industries (IAI) e o exército israelense. Tal percepção, por parte das forças israelense, só surgiu em função do atual cenário.
A parceria com Cohen se encaixa na nova política do Ministério da Defesa. Por meio do Departamento de Pesquisa e Desenvolvimento (DDR&D), a entidade adquiriu a toque de caixa produtos de mais de 100 startups que atuam tanto no mercado de defesa quanto no comercial.
De tamanho pequeno, drones são difíceis de detectar. A trajetória deles não é previsível. Eles não emitem calor intenso, por não terem motores de foguete. Os caças podem bloqueá-los, mas em manobras muito mais perigosas e de custo alto.
Os drones obrigam oponentes mais fortes do que quem os lança a direcionar recursos escassos e caros para defesa. Daí o termo “guerra assimétrica.”.
“Enquanto os drones Ababil iranianos usados pelo Hezbollah podem custar US$ 5 mil cada, uma hora de voo para um F-16 disparando dois mísseis custa cerca de US$ 45 mil”, afirma,, ao Wall Street Journal, Yehoshua Kalinsky, pesquisador sênior do Instituto de Estudos de Segurança Nacional de Tel-Aviv. “Uma interceptação pelo Iron Dome é ainda mais cara e pode custar US$ 100 mil ou mais.”
Recado ao Irã
O novo contexto fez a inteligência israelense entrar em um processo de transformação. Redefiniu em poucos meses, a abordagem nesta “guerra assimétrica”. Uma série de pesquisas, muitas já implementadas, se direcionou a soluções em detecção de túneis; ações antidrones; análise de sensores com inteligência artificial (IA); mira antecipada de armas; robótica avançada, entre outras.
Alguns contratos emergenciais com o Ministério da Defesa superam US$ 6 milhões, totalizando mais de US$ 270 milhões.
A mudança tem sido rápida. Até a ação do Hamas, o capital de risco tradicional vinha evitando o setor de defesa, deixando as startups sem suporte para concretizar suas inovações, segundo afirmou Hamutal Meridor, veterana da Unidade 8200, ao sul-africano Jewish Report.
“Israel precisa unir a inovação da nação das startups com a força militar.”
A operação que matou o líder do Hamas, Ismail Haniyeh, em 31 de julho, foi um importante passo na retomada da credibilidade da inteligência israelense. Na série Fauda, seria o êxito maior, a eliminação de O Pantera.
Na vida real, a sensação de êxito é semelhante. Quase 10 meses depois, o mundo se surpreendeu com o assassinato, visto como uma façanha militar, realizada em plena capital do Irã. A operação ousada foi atribuída ao Mossad.
Mesmo sem assumir a autoria, com a discrição que moldou sua história, todas as evidências indicam que o órgão israelense tramou a morte de um de seus principais inimigos. “O Instituto” voltava, tudo indica, a dar as cartas nesta guerra de informações. Com um recado direto ao Irã.
“A principal consideração para alvejar Haniyeh no Irã, de todos os lugares [que ele frequentava], foi política, mas também transmite uma mensagem séria ao Irã sobre como Israel é capaz de atingir qualquer indivíduo lá”, afirma o jornalista Ilan Evyatar, ao Israel Hayom.
Evyatar é especialista no tema e autor, junto com Yonah Jeremy Bob, correspondente do The Jerusalem Post, do livro Target Tehran: How Israel is using sabotage, cyberwarfare, assassination – and secret diplomacy – to stop a nuclear Iran and create a new Middle East.
Velha forma
É inegável que o Hamas se preparou para o ataque de outubro. Estudou o terreno, neutralizou as linhas de comunicação, ludibriou com seu silêncio. Em paralelo, lançou mísseis e tentou penetrar pelo mar, enquanto os seus jovens terroristas agiam no solo.
A ação, porém, seria contida de forma até simples se a inteligência de Israel tivesse percebido antes que algo mudou no cenário de guerra. Os mapas hoje apontam muito mais para alvos do que para tropas.
Por este tipo de falha, o Irã instalou um grande arsenal de sistemas de armas avançados ao redor de Israel, como tem sido visto nos últimos meses.
“O Irã está fortemente entrincheirado na vizinhança imediata de Israel”, admite Evyatar.
“Apesar dos nossos esforços para conduzir uma série intensiva de ‘operações de zona cinzenta’ nos últimos anos, o Hezbollah ainda tem um vasto arsenal de foguetes, mísseis de precisão e drones que são extremamente difíceis de interceptar.”
Além disso, há os ataques dos houthis, que têm ficado mais sofisticados, e o fornecimento de armamento iraniano aos terroristas em Gaza.
“Também fomos testemunhas da força considerável empregada pelos houthis desde o Iêmen, atingindo em cheio, em mais de 2 mil km, um prédio em Tel-Aviv, bem como da quantidade de armas que os iranianos conseguiram trazer para a Faixa de Gaza.”
A morte de Haniyeh já foi um sinal de que o Mossad e seus parceiros, com tecnologia direcionada para a era cibernética, começaram a recuperar o tempo perdido.
“Haniyeh foi atingido por tiros de precisão, ele foi morto junto com seu guarda-costas, e sem que ninguém mais se machucasse”, afirma Evyatar. Sensores, softwares e novos equipamentos foram importantes para a ação.
Diante de uma possível resposta, Israel já voltou a se preparar em várias frentes. Exemplo disso foi a precisa ação que, segundo as FDI, se antecipou a um amplo ataque de drones do Hezbollah, que visavam também às sedes da FDI e do Mossad.
“Nossa inteligência acompanha de perto o Hezbollah com meios tecnológicos e patrulhas aéreas de aviões da Força Aérea”, afirma o porta-voz das FDI, Rafael Rafael Rozenszajn.
Tudo para não haver mais surpresas. O Mossad trabalha agora para mostrar que recuperou a velha forma. Nesta nova era. A história mostra que, para Israel se manter seguro, precisa do suporte de seu protagonista silencioso. Na ficção e na realidade.