“Massa ou frango?” Já parou para pensar no processo por trás dessa pergunta, uma das mais clássicas e icônicas do serviço de bordo? Pode parecer simples, mas a logística que garante que a refeição servida a mais de 10 mil metros de altitude chegue perfeita envolve protocolos rigorosos e números impressionantes.
Prova disso é a operação diária da gategourmet, que fornece refeições para 17 companhias aéreas internacionais no Aeroporto de Guarulhos, o maior e mais movimentado da América do Sul. Nascida na Suíça, a empresa estima que, em 2023, 590 milhões de passageiros foram atendidos no mundo em 60 países de seis continentes.
Distante cinco quilômetros da rampa do aeroporto – ou cerca de 13 minutos de carro -, a unidade da empresa em Guarulhos tem 17 mil metros quadrados, que abrangem diversas câmaras frias, cozinhas, padaria, confeitaria, lavanderia e áreas de higienização e de montagem.
Daqui saem uma média de 17.500 refeições por dia, que enchem mil carrinhos, batizados de “trolleys”, empurrados pelos comissários nos corredores da aeronave. Cerca de 700 receitas são feitas por dia, que abastecem uma média de 30 voos diários de longo alcance.
“Quando a gente senta na poltrona e recebe a comida, não sabemos a logística por trás. É um mundo à parte”, diz Ivan Catucci, country manager da gategourmet no Brasil.
Comida de avião além do “chicken or pasta”
O cardápio que será servido na aeronave já está definido antes mesmo dos ingredientes chegarem à unidade, determinado exclusivamente pela companhia ou feito em conjunto com a empresa de catering. A localização de cada aeroporto influencia no que será usado ou não, mas tudo depende de um fator: o orçamento das companhias aéreas.
“Se a companhia aérea entende que está ganhando pelo serviço de bordo, ela investe mais. Quando sente que está perdendo espaço, também investe mais”, diz Carlos Bittar, presidente da gategourmet para a América Latina.
O “chicken or pasta” persiste como o campeão das combinações, principalmente a pedido das companhias norte-americanas, mas aéreas de outros territórios demandam diferentes versões.
Segundo Guilherme Schulze, chef executivo da empresa no Brasil, sempre há a tentativa de mudança e de novas receitas. “Já tentamos sair da ideia do peito de frango com outros tipos de preparos, como o flan de peixes na econômica. A questão maior é o orçamento das companhias. A ideia é sair da tradição do ‘chicken or pasta’ como opção de proteína e de vegetariano”, explica.
“O prato para os vegetarianos não precisa ser massa. Provamos recentemente uma moqueca de palmito. Estou conseguindo colocar essa receita no lugar da massa, já que atende tanto o vegetariano quanto o vegano”, revela o chef.
Em certas companhias do Oriente Médio, os asiáticos são o maior número de passageiros, o que fez com que Guilherme apostasse em pratos de inspiração japonesa para o serviço de bordo. Lámen, por exemplo, poderá constar em menus futuros.
A quantidade de pratos de certos trajetos também é definida pelas aéreas. “Funciona para todas as classes da mesma forma, em que são definidas porcentagens para cada prato. Na classe econômica, o mais comum é que a proteína corresponda entre 60 e 70% e que o prato vegetariano seja de 30 a 40%. Mas é uma decisão deles”, conta Guilherme.
Os menus são desenhados seguindo ciclos, comumente servidos mensalmente. Segundo o chef, são criados quatro ciclos no ano. “Cada cardápio é diferente do outro. São quatro cardápios para cada classe da aeronave, os quais costumam mudar todo dia primeiro do mês. Então há um menu em janeiro, fevereiro, março e em abril. O de janeiro vai repetir em maio, e por assim por seguinte”, exemplifica.
A chegada na unidade
A unidade da gategourmet em Guarulhos funciona 24 horas, todos os dias, e tem 800 funcionários. O processo não passa por muita mecanização, com prioridade para o trabalho manual. Um sistema atualiza o número de voos, a quantidade de passageiros e a divisão de classes que serão atendidos por dia.
Um dos destaques é que a operação é dividida entre Halal e não Halal, para que companhias aéreas do Oriente Médio, como Emirates, Qatar e Turkish, por exemplo, sejam contempladas com padrões específicos de serviço seguindo pilares muçulmanos.
Os funcionários que mexem com alimentos Halal não manipulam outros alimentos e até panos, mantas e travesseiros passam pelo processo de divisão.
E tudo começa com o fluxo do fornecedor: o caminhão chega, passa pelo recebimento fiscal e é inspecionado. A carga segue ao almoxarifado, com áreas secas e câmaras frias para estoque. Cartelas de ovos, por exemplo, não entram na unidade: no lugar, são usados ovos pasteurizados.
Para evitar contaminação, nenhuma caixa de papelão, vidro ou lata passa para as áreas internas próximas às cozinhas. Os produtos são decantados e colocados em cestos plásticos, que entram no grande corredor da área culinária.
Como é feita a comida de avião: pré-preparo
1 de 5
Carnes são grelhadas uma a uma e passam por processo de resfriamento para serem empratadas • Divulgação/Gategourmet
2 de 5
Croissants, bagels e brioches são algumas das receitas diárias feitas na padaria da unidade • Divulgação/Gategourmet
3 de 5
Desde a massa até a passagem no forno, padaria é responsável por produzir cerca de 70 mil pães diários • Divulgação/Gategourmet
4 de 5
Frutas e legumes são cortados em área de pré-preparo dos alimentos • Divulgação/Gategourmet
5 de 5
Mini burrata com tomates marinados e camarões machbous são alguns dos pratos feitos na unidade em Guarulhos servidos na primeira classe e na business • Saulo Tafarelo
A primeira etapa do pré-preparo é a higienização de hortifruti. São processados cerca de 1.800 kg por dia além do que já chega pronto – as entregas são feitas na noite do dia anterior para, na manhã seguinte, serem manipuladas. Cenouras, pepinos e folhas são cortados e lavados, então refrigerados e usados em até 48h.
A cozinha quente também impressiona. São fogões com inúmeras bocas, fritadeiras, chapas e caldeiras entre 100 e 200 litros. Aqui são feitas cerca de:
- 900 omeletes diárias;
- 250 kg de purê de batatas (para uma única cia aérea);
- média de 400 litros de molho;
- 550 kg de ragu.
Depois da cocção ou da chapa, como no caso das carnes grelhadas, os alimentos seguem para o resfriamento, em que atingem 5ºC entre duas e quatro horas. Na área da cozinha quente, tudo que é feito em um dia será servido no próximo.
A padaria também tem números superlativos: são, em média, 70 mil unidades de pães por dia, de 55 tipos diferentes, como brioches, croissants e bagels, feitos a partir do zero. Eles são produzidos no dia para serem colocados em voos na mesma data. Já a confeitaria faz, em média, 8.600 sobremesas diariamente, com cerca de 75 tipos de doces.
Uma vez dentro do avião, as marmitas são aquecidas em fornos especiais e os comissários recebem guias de empratamento e tempo de forno.
Condições como baixa pressão e ar seco dentro das aeronaves causam alterações no olfato e no paladar, consequências levadas em conta pela equipe. “Perde-se um pouco de tempero com a pressão do avião. A comida servida sempre está um pouquinho mais forte na pimenta ou no sal. Tentamos também buscar sempre a maciez e a boa textura para ser de fácil mastigação”, explica Guilherme.
Os desafios vão além: são evitados pratos que dificultam a mobilidade, principalmente na econômica, assim como alimentos muito líquidos ou que exigem uso de faca. Pelo tempo de geladeira e temperatura, comidas crocantes não são populares no ar. A altura entre uma prateleira e outra no carrinho é uma barreira, limitando pratos mirabolantes ou frascos de iogurtes, por exemplo.
Importante ressaltar que comidas para a primeira classe, business e econômica são todas feitas nas mesmas cozinhas, mas em tempos diferentes.
Certas receitas são feitas por cozinheiros de forma padronizada. Eles recebem uma caixa com todos os ingredientes necessários, sem mais nem menos, com as quantidades já dosadas, para não existir risco de alteração.
Montagem e distribuição
Com as receitas prontas, é hora da montagem. As comidas são acomodadas em pratos, então colocadas em bandejas e seguem para os carrinhos. O empratamento dos alimentos segue um padrão, em que funcionários obedecem o modelo de uma foto.
Bebidas fechadas, como refrigerantes e vinhos, também saem daqui. Estes são os únicos itens que, se permanecerem lacrados, podem voltar à terra e serem usados em outros voos após triagem.
São mais de 20 tipos de restrições alimentares respeitadas pela empresa, e os alimentos especiais devem ser exigidos pelos passageiros à companhia aérea com antecedência. O pedido é repassado à gategourmet e o nome do passageiro é escrito em cada refeição especial.
Finalizado todo o processo, os carrinhos são abastecidos, lacrados e levados para a área das docas – são 28 em Guarulhos. Agentes de inspeção analisam cada prateleira dos trolleys e dão sinal verde para que os caminhões sejam carregados e cheguem até as aeronaves. Um Airbus A380, por exemplo, demanda o abastecimento de cinco caminhões.
Travesseiros, mantas, edredons e guardanapos também são estocados aqui, em que são lavados, engomados e embalados novamente após o uso. Cada companhia tem seu estoque com estes itens e, caso haja uma defasagem no número de mantas, por exemplo, a aérea repõe – é comum que passageiros levem para casa as mantinhas dadas durante o voo.
E tudo que vai, volta. Os aviões que chegam em Guarulhos retornam os trolleys à unidade, em que todo o lixo é levado à área de descarte. Com exceção das bebidas lacradas, tudo que foi para o ar tem que ser jogado fora.
Os resíduos de alimentos e embalagens, incluindo plásticos, são incinerados. Mesmo que uma bandeja lacrada volte intacta, as regras da aviação demandam o descarte. Se um voo foi cancelado em cima da hora, os alimentos também devem ser descartados. As exigências sanitárias são claras: se o alimento saiu da fábrica, ele não ganha uma segunda chance.
*O jornalista foi convidado a conhecer a facilidade da gategourmet seguindo protocolos de higiene e uso de roupas especiais.
Aviões das viagens mais longas do mundo recebem reforma de R$ 4,7 bi