A ciência ainda não sabe por que os Neandertais desapareceram: se eliminados violentamente pelos Sapiens; se privados por estes de suas fontes de recursos naturais; se contaminados por doenças que estes possam ter trazido de terras distantes. Talvez os três fatores tenham se combinado. Ou, quem sabe, a causa possa ter sido inteiramente outra.
De qualquer forma, duas coisas são certas. Primeira, o desaparecimento do Homo neanderthalensis “coincidiu” com a chegada do Homo sapiens à Europa. Originário da África, este viveu por muitas gerações no Oriente Médio, antes de alcançar o continente europeu. Segundo, houve contato sexual entre as duas populações. A prova disso é que os humanos da atualidade, descendentes dos Sapiens, carregam um pequeno percentual de genes neandertais em seu genoma.
Tal percentual, de 2% a 4%, ocorre de maneira uniforme em todas as populações humanas atuais. Porém, uma taxa expressivamente maior, de 6%, foi detectada no DNA de dois crânios Sapiens, datados de 35 mil a 40 mil anos, encontrados na Romênia. Artefatos tipicamente neandertais já foram descobertos na região. Mas falta achar as ossadas, que, tudo indica, devam existir, tanto pela posição estratégica que os Bálcãs ocupam na passagem do Oriente Médio para a Europa, quanto pelo maior estoque de genes neandertais nos crânios Sapiens lá desenterrados.
Em busca desses vestígios comprobatórios, o veterano pesquisador Walter Neves viajou à Romênia com o objetivo de prospectar sítios arqueológicos e paleontológicos propícios à descoberta. “O primeiro passo é determinar os lugares mais prováveis. O passo seguinte será escavar sítios com mais de 40 mil anos, na esperança de encontrar ossadas neandertais”, diz Neves.
O estudo, que será realizado por uma missão científica romeno-brasileira, recebe apoio da Fapesp por meio do projeto “A interação entre neandertais e humanos modernos no norte dos Bálcãs: uma abordagem paleoantropológica”.
“Três crânios de Sapiens encontrados na Romênia mostram sinais que são típicos de Neandertais, sugerindo que possa ter ocorrido ali alguma forma de hibridização entre as duas espécies. Mais recentemente, o DNA retirado de dois desses três crânios mostrou de fato 6% de genes neandertais, uma taxa considerada alta. Ficou claro que aquela foi uma região na qual as duas espécies trocaram genes”, informa o pesquisador.
Descobertas anteriores, realizadas nos Montes Cárpatos, na Romênia, mostraram que eles constituíram uma das rotas que os primeiros Sapiens utilizaram para ingressar no continente europeu. O objetivo de Neves é achar os locais exatos em que se deu o encontro com os Neandertais e o que aconteceu a partir disso.
“Vamos prospectar sítios na garganta do rio Vârghi, ao norte das Montanhas Perani, nos Cárpatos Orientais. Este foi, com grande probabilidade, um local do encontro. Escavações nas cavernas da região, na faixa correspondente ao Paleolítico Médio, podem trazer informações cruciais sobre como as duas espécies humanas interagiram e lidaram com as mudanças climáticas que ocorreram na área”, afirma.
Para isso, os pesquisadores realizarão prospecções arqueológicas utilizando metodologias de documentação e gerenciamento informatizadas desenvolvidas pela própria equipe. Aplicarão diversos métodos de datação, incluindo radiocarbono, relação urânio/tório e luminescência opticamente estimulada, para estabelecer a cronologia dos depósitos antropogênicos. Farão análises de micromorfologia e sedimentologia para determinar os processos de formação dos sítios arqueológicos. E, por fim, analisarão morfológica e taxonomicamente os remanescentes fósseis e farão uma bateria de análises moleculares para determinação de dieta, mobilidade e história populacional.
Ancestral comum
Sapiens e Neandertais descendem de um ancestral comum, o Homo heidelbergensis, que teria evoluído de linhagens africanas do Homo erectus há uns 600 mil anos. As migrações do Homo heidelbergensis para diferentes hábitats determinaram a diferenciação das duas espécies-filhas.
Os Sapiens surgiram na África há cerca de 230 mil anos; lá permaneceram por bastante tempo; depois, migraram para o Oriente Médio e, mais tarde, para a Europa. Os Neandertais se formaram na Europa e habitaram o continente europeu entre 250-200 mil e 40 mil anos atrás. Seu desaparecimento, há aproximadamente 40 mil anos, coincidiu com a chegada dos Sapiens.
“Os neandertais tinham o neurocrânio alongado, a testa chata e a face bastante projetada para a frente. Seu cérebro, com cerca de 1.550 centímetros cúbicos, era maior do que o nosso, que possui em média 1.350 centímetros cúbicos. Mas seu córtex pré-frontal era menos desenvolvido, daí a testa achatada”, descreve Neves. O pesquisador acredita que as escavações na Romênia poderão esclarecer como esses primitivos habitantes da Europa viviam; de que maneira se relacionaram com os Sapiens, vindos do Oriente Médio; e se foi essa interação que determinou seu desaparecimento.
Neves enfatiza também a importância geopolítica, vamos dizer assim, da missão. “Do ponto de vista da paleoantropologia, o Brasil é um nada. O único núcleo que estuda a macroevolução humana é o nosso, no Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA-USP). Geralmente, o que acontece é que são pesquisadores de países do Primeiro Mundo que vão buscar os nossos ancestrais em sítios de países do Terceiro Mundo. Isso dá a eles uma coisa muito importante na minha área, que a gente chama, brincando, de ‘fossil power’ [poder fóssil]. Agora, estamos invertendo o sentido: somos pesquisadores do Terceiro Mundo indo estudar macroevolução humana no Primeiro Mundo. Isso é importante para o Brasil, porque os estudos de evolução humana têm uma visibilidade muito grande”, afirma.
Esta será a segunda missão paleoantropológica realizada por pesquisadores brasileiros no exterior. A primeira, liderada pelo próprio Neves, ocorreu na Jordânia, e foi financiada majoritariamente pela Fapesp. “Na Jordânia, trabalhamos com nossos ancestrais de 2,5 milhões de anos. Agora, vamos trabalhar em um intervalo entre 60 mil e 40 mil anos. E o nosso sonho para o futuro é estabelecer uma missão brasileira na África”, resume o pesquisador.
Na Jordânia, Neves e colaboradores encontraram os artefatos líticos mais antigos fora da África. “Isso nos permitiu retroceder a primeira saída dos hominídeos da África em cerca de 700 mil anos – o que está mudando completamente o quadro da dispersão dos primeiros representantes do gênero Homo”, conta. A expectativa do pesquisador é que a missão na Romênia possa ser tão proveitosa assim.
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