“Estamos aqui por amor, mas estamos no limite.” Essa frase foi dita pela turismóloga Marcia Natchigall, de 37 anos, que atua como voluntária no acampamento do Caíru há cerca de uma semana. A equipe de reportagem de Oeste esteve no local na terça-feira, 14.
O acampamento fica embaixo do viaduto José Eduardo Utzig, o “Viaduto da Cairú”, em Porto Alegre. Algumas das vias adjacentes permanecem alagadas. De longe, é possível visualizar pessoas transitando entre tendas e barracas improvisadas, cujas funções são variadas.
Nas primeiras tendas, se encontram os serviços de transporte de desabrigados, farmácia, cozinha e um pequeno posto de vacinação. Os civis costumam dormir em barracas ou dentro de um ônibus da Prefeitura de Porto Alegre, onde tentam se proteger, de forma precária, das chuvas e do frio que invadiu o RS.
A precariedade se estende às formas que as pessoas encontram para descansar. Não há colchões no acampamento do Cairú. Quando exaustos, alguns dos abrigados e voluntários forram o chão de asfalto e deitam, enquanto outros improvisam uma cama com pallets e cobertas para tentar amenizar o desconforto.
Também há civis que encontraram uma forma de fazer uma “cama” com cadeiras de praia e cobertores. Contudo, a queixa permanece a mesma: as soluções são desconfortáveis e, além da falta de infraestrutura, a preocupação não permite descanso.
As vítimas das enchentes que se instalaram no Cairú relatam que o Poder Público não presta nenhum tipo de apoio aos presentes. Toda a estrutura do acampamento — incluindo alimentação, medicamentos, materiais de resgate e aquisição e montagem de barracas — é mantida por civis.
Segundo William Ramos Dutra, brigadista de 25 anos, fora os voluntários, a ajuda vem totalmente de instituições ou empresários que residem fora do Rio Grande do Sul. Ele conta que o governador Eduardo Leite (PSDB) e o prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo (MDB) estiveram presentes no alojamento. No entanto, não deram atenção às demandas dos abrigados.
“Toda a ajuda que recebemos aqui é voluntária”, disse William, em entrevista exclusiva a Oeste. “Muitas pessoas estão vindo de fora, de lugares como São Paulo, Rio de Janeiro, Santa Catarina… Temos voluntários até do Amapá. Enquanto isso, o Eduardo Leite e o Sebastião Melo estiveram aqui, deram entrevista para as emissoras grandes, tiraram uma foto perto das vias alagadas e foram embora.”
William também relatou que, na ocasião, pediu que Leite disponibilizasse helicópteros do tipo Águia para auxiliar nos resgates noturnos, visto que, além da escuridão enfrentada pelos voluntários, muitos deles estavam sendo vítimas de tentativas de assaltos. Ele não teve retorno. Alguns agentes da Brigada Militar e demais forças de segurança atenderam aos pedidos dos voluntários e agora ajudam no policiamento do abrigo.
Apesar das dificuldades enfrentadas pelo acampamento do Cairú, o brigadista diz que se sente satisfeito em ver a união entre as pessoas, mesmo que muitas destas tenham perdido tudo nas enchentes.
“Conseguimos salvar muitas pessoas, animais, famílias… Hoje, todas elas estão aqui, unidas”, prosseguiu William. “Isso é algo que ninguém vai tirar de nós. Aqui, muitas crianças sabem que os pais delas são heróis, que eles salvaram pessoas. São os heróis da vida real. Muitas vezes, eles não vão usar capas e nem distintivos.”
Em Porto Alegre, é o povo pelo povo
A voluntária Nataly Pires, de 23 anos, deixou de comparecer ao trabalho para atuar em ações de resgate e acolhimento às vítimas das enchentes. No acampamento do Cairú, ela já desempenhou várias funções: auxiliou no postinho de saúde, participou de resgates de animais e fez triagem de doações. Nos últimos dias, a voluntária tem participado de salvamentos de pessoas.
Nataly acredita que, neste momento, o mais importante é salvar pessoas e fornecer a elas um pouco de conforto e dignidade. Ela e os voluntários do acampamento do Cairú têm se esforçado para garantir que os abrigados tenham acesso a comida, água e demais insumos necessários para a sobrevivência. Assim como os demais, a mulher ressaltou a falta de assistência por parte do Estado.
“O governo não repassou nada para a gente”, explicou Nataly. “Não temos estrutura, estamos fazendo o que podemos. Estamos embaixo de um viaduto, não temos dormitórios, não há nada para que as pessoas possam esfriar um pouco a cabeça […] Quem deveria estar nos ajudando não fornece auxílio para a gente. Se não é o povo pelo povo, não teria resgate, não teria acampamento… Não teria nada.”
A voluntária diz que suas reivindicações não são para “alfinetar” políticos, e sim para que ela e a equipe do acampamento do Cairú possam atender melhor a todas as vítimas que necessitam de acolhimento.
Devido à atuação no alojamento, Nataly decidiu que, assim que tudo se normalizar, ela se tornará bombeira civil. “Quero resgatar vidas”, declarou. “Mesmo que isso signifique dobrar roupas ou ficar abraçada com um porco por horas, igual fiquei essa semana, pois os porcos da ala veterinária estavam com frio. Mas quero ajudar a todos de alguma forma”.
A maior crise sanitária do Brasil
A princípio, Marcia Natchigall chegou no Cairú junto de sua amiga, Tânia, para entregar comida, coleiras e medicamentos para cães. Todos os recursos para a aquisição dos insumos foram retirados de seu bolso. Ao perceber a necessidade da presença de pessoas engajadas no acolhimento aos animais, acabou ficando.
Nos primeiros dias, o local contava com a vigilância do Exército. A presença militar se dispersou ao longo do tempo, dando lugar à escolta de agentes da Polícia Civil, Brigada Militar, Guarda Municipal e demais forças de segurança, que atuam em regime de escala. Os voluntários permanecem no alojamento 24 horas por dia.
Marcia conta que a ala veterinária do acampamento do Cairú conta com a atuação de 40 veterinários fixos e aproximadamente cem voluntários. Cães, gatos e até cavalos recebem tratamento na clínica improvisada. Por causa do grande fluxo de animais, ela também começou a se preocupar com questões de estrutura, segurança e insumos.
“Estamos nos virando nos 30”, disse Marcia. “As barracas do nosso acampamento estão ficando muito isoladas. Estamos sem segurança, até roubo de medicamentos já tivemos aqui dentro. Precisamos muito da ajuda do governo. Amo cachorros, amo animais, mas está difícil.”
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A falta de apoio do Poder Público é a maior preocupação da turismóloga. Além das dificuldades para manter a clínica improvisada em pleno funcionamento, ela também conta que não sabe o que os governos irão fazer quando os abrigos — geralmente instalados em universidades, escolas e ginásios — tiverem de voltar às suas atividades habituais.
Para Marcia, em virtude do alto número de animais resgatados nas enchentes, o Brasil deve enfrentar a “maior crise sanitária” de sua história. “É a maior crise sanitária que o país vai ver”, explicou. “A maioria desses bichos está infectada. Eles ficaram nadando por horas. Já temos casos de parvovirose, cinomose e até leptospirose, por causa do contato com a água contaminada. Vamos ver o que irá acontecer, né? Mas há a possibilidade”.
Força e solidariedade
Desde que chegaram ao Cairú, Sailon Olenick e Thaigo Santos não conseguem dormir uma noite inteira. O vendedor de celulares e o professor de basquete estão empenhados em resgates, que se iniciam diante da claridade das primeiras horas do dia e vão até o breu das madrugadas.
Thaigo chegou no alojamento sozinho e afirmou que admira a força e a união entre as vítimas do desastre natural. Para ele, é emocionante ver que pessoas que perderam tudo o que tinham conseguem resgatar forças para ajudar quem está passando por uma situação semelhante ou pior do que a que foi vivida.
O voluntário acredita que a mesma união permitiu que ele formasse uma “família” dentro do acampamento do Cairú. O professor de basquete relatou que, junto dos demais abrigados, mesmo que ele arrisque a própria vida para salvar um humano ou um animal, não há o que temer.
“Vi muita gente daqui arriscando a vida pelos outros, e isso fez com que eu sentisse uma sensação de inquietação, sabe?”, contou Thiago. “Por isso, decidi vir para cá e ajudar da melhor forma possível. Enquanto eu estiver de pé, enquanto estiver respirando, enquanto estiver com energia para fazer qualquer coisa, qualquer coisa mesmo, não consigo ficar em casa. Tenho de estar aqui.”
Seu amigo, Sailon, também não consegue mais ir para casa para descansar. Além do desgaste mental causado pelas cenas encontradas durante os salvamentos, o vendedor de celulares pensa que ele é mais útil no front do que dormindo. Assim, ele e os demais voluntários preferem tirar pequenos cochilos de uma a três horas do que se ausentar do local e deixar de prestar auxílio nos resgates na região.
“Eu não estava preparado para nada do que vi”, relatou. “Não consigo ir para casa para descansar, pois lembro do que encontrei e também não me sinto confortável em estar ‘ocioso’, enquanto há pessoas precisando de resgate. Somos a única salvação de idosos, crianças, famílias inteiras. Não dá para parar. O sono virou um luxo.”
Além das experiências parecidas, a dupla compartilha a mesma opinião: de que a região do Cairú virou um “cenário de guerra”. Com a ausência do Estado, os civis estão desempenhando o papel de cuidar dos civis, mas não se sabe até quando isso será possível. Caso o Poder Público não se incline para escutar as demandas e os pedidos de socorro dos voluntários e abrigados, a tendência é piorar.