Um em cada dois homens e quase uma em cada três mulheres terão câncer durante a vida. Em pelo menos um em cada 10 casos, o tumor será provocado por mutações no gene KRAS, descoberto em 1982, mas tão diabolicamente complexo que a comunidade científica tenta revelar o seu calcanhar de Aquiles há quatro décadas.
Alterações no KRAS estão por trás de quase 90% dos casos de câncer de pâncreas, 40% dos cânceres de cólon e 35% dos cânceres de pulmão. Uma equipe do Centro de Regulação Genômica de Barcelona conseguiu finalmente criar um mapa completo das suas fraquezas. Seu avanço foi publicado na segunda-feira (18) na revista Nature, vitrine do que há de melhor na ciência mundial.
Os genes são simplesmente trechos de DNA com instruções para produzir uma proteína. O gene KRAS é o manual para gerar a proteína KRAS, uma espécie de interruptor que faz com que a célula se divida. A ativação descontrolada do KRAS faz com que as células fiquem descontroladas, se multipliquem e gerem câncer.
Durante décadas, esta proteína foi considerada um alvo impossível de tratar com medicamentos. Porém, em 2021, a farmacêutica norte-americana Amgen obteve a autorização do sotorasibe, um medicamento eficaz contra o câncer de pulmão em pessoas que apresentam uma mutação específica no gene KRAS, associada aos danos causados pelo tabagismo.
O bioquímico Ray Deshaies, vice-presidente de ciência da Amgen, resumiu abertamente no ano passado: “[O atraso de quase quatro décadas] não foi porque não sabíamos o que queríamos fazer, que era inibir o KRAS, mas porque não tínhamos nem ideia de como fazê-lo”, reconheceu.
A chave para os avanços é o alosterismo, fenômeno considerado “o segundo segredo da vida”, nas palavras de seu descobridor, o biólogo francês Jacques Monod, que por ele ganhou o Prêmio Nobel de Medicina em 1965. O DNA seria o primeiro segredo. Monod percebeu que as proteínas tinham algum tipo de botão oculto que mudava sua função.
Encontrar essas fontes não é fácil. A molécula de água, por exemplo, possui apenas dois átomos de hidrogênio e um átomo de oxigênio (H₂O). A proteína KRAS, por outro lado, possui 939 átomos de carbono, 1.516 de hidrogênio, 260 de nitrogênio, 291 de oxigênio e 10 de enxofre (C₉₃₉H₁₅₁₆N₂₆₀O₂₉₁S₁₀). É um gigante químico inexpugnável há décadas.
Os autores do novo estudo recorrem a uma comparação clássica. A proteína KRAS, explicam eles, é como a Estrela da Morte, a estação espacial inconquistável da saga do filme Star Wars.
— A proteína é bastante esférica e tem poucos locais que você possa imaginar como pontos de ligação de um medicamento” — diz o bioinformático sul-africano André Faure, que trabalha na instituição de Barcelona.
— Ela se considerava impenetrável — enfatiza seu colega Albert Escobedo.
No filme Star Wars, os mocinhos encontraram um mapa da Estrela da Morte e o herói Luke Skywalker conseguiu acertar um tiro certeiro no único ponto fraco. A equipe do Centro de Regulação Genômica obteve agora o mapa completo do KRAS.
Os pesquisadores usaram uma nova técnica para analisar o efeito de 26 mil mutações na estrutura da proteína, em vez de dezenas, como era habitual nas ferramentas anteriores. Os seus resultados confirmam um ponto fraco já conhecido, o utilizado pelo sotorasibe e também pelo adagrasibe, outro medicamento aprovado há um ano contra o câncer do pulmão. São os únicos dois medicamentos autorizados que inibem a proteína KRAS. O novo mapa revela ainda outro calcanhar de Aquiles desconhecido: a chamada cavidade 3.
— Até agora não se sabia que este local tinha efeito alostérico e, por isso, as empresas farmacêuticas não lhe tinham prestado atenção — salienta Escobedo.
É a primeira vez que é possível criar um mapa completo dos pontos fracos – ou alostéricos – de uma proteína, segundo os autores, liderados pelo biólogo britânico Ben Lehner e seu colega chinês Chenchun Weng. Os investigadores sublinham que existem milhares de proteínas associadas a centenas de doenças humanas, mas muito poucas foram controladas com medicamentos.
— A maioria das proteínas não possui sítios alostéricos conhecidos — lamentam os quatro cientistas.
Lehner e Faure, juntamente com os seus colegas Júlia Domingo e Pablo Baeza, lançaram no dia 30 de novembro a ALLOX, uma empresa ligada ao Centro de Regulação Genômica de Barcelona que irá conceber novos medicamentos direcionados a sítios alostéricos contra o cancro e outras doenças. Tal como em Star Wars, os cientistas já têm um avião e um ponto fraco. Agora eles precisam fazer um torpedo.
O bioquímico Mariano Barbacid foi um dos principais pesquisadores envolvidos há mais de quatro décadas na descoberta do KRAS, o primeiro gene humano ligado ao câncer. O investigador lembra que foram necessárias três décadas até que Kevan Shokat, químico de origem iraniana que trabalhou na Universidade da Califórnia, em São Francisco, encontrasse em 2013 “uma pequena lacuna” na proteína KRAS que permitiu o desenvolvimento dos primeiros inibidores seletivos, sotorasibe e adagrasibe.
— Desde então, toda uma série de inibidores foi sintetizada contra as diferentes formas mutadas do KRAS. Infelizmente, a atividade terapêutica destas moléculas não tem sido tão eficaz quanto o esperado — afirma Barbacid, do Centro Nacional de Investigação do Cancro (CNIO), em Madrid.
O co-descobridor do gene KRAS destaca que a equipe liderada pelo oncologista Luis Paz-Ares, do Hospital 12 de Octubre de Madrid, mostrou em fevereiro que a sobrevivência dos pacientes com câncer de pulmão tratados com sotorasibe é semelhante à alcançada com a quimioterapia clássica , mas com menos toxicidade e melhor qualidade de vida.
— A resposta terapêutica para tumores pancreáticos, pelo menos por enquanto, é ainda mais limitada. Portanto, embora a disponibilização destes medicamentos represente um marco muito importante na oncologia molecular após 40 anos de esforço, é também um banho de humildade que nos diz que teremos de continuar a investigar para obter mais e melhores inibidores — acrescenta Barbacid, que não esteve envolvido no novo estudo.
O investigador do CNIO publicou em março que a eliminação do gene KRAS em ratos geneticamente modificados resultou no desaparecimento completo dos seus tumores.
— Tendo em mente que os resultados experimentais nem sempre são reproduzidos em ambiente clínico, é muito possível que os inibidores do KRAS significativamente mais potentes do que os atuais possam ter efeitos semelhantes nos pacientes. Estudos como o publicado hoje por este grupo de pesquisadores da Nature abrem um roteiro muito importante e esperançoso para atingir esse objetivo — aplaude Barbacid.