Como sintetizar a mais acirrada das disputas presidenciais do atual período democrático do país, travada por duas lideranças carismáticas no sentido weberiano da palavra, e apontar suas consequências além das eleições?
Para o cientista político Felipe Nunes, sócio-fundador do instituto de pesquisa Quaest, e o jornalista e consultor Thomas Traumann, o caminho escolhido foi dissecar os perfis de quem votou em Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Jair Bolsonaro (PL) e explicar como a polarização extrapolou a política e chegou ao cotidiano dos brasileiros, num fenômeno definido como calcificação.
“Em Biografia do Abismo: Como a polarização divide famílias, desafia empresas e compromete o futuro do Brasil”, os autores detectaram oito grupos de eleitores, a partir de um modelo de análise fatorial com base em perguntas feitas aos apoiadores de Lula e Bolsonaro e suas respostas.
É uma tentativa de descrever sociologicamente os diversos perfis de apoiadores, com resultados que ajudam a entender por que a polarização política atingiu os níveis vistos atualmente.
Para Nunes e Traumann, os 60,3 milhões de eleitores de Lula (51% do total) se dividem em quatro grupos que tinham como objetivo comum evitar a reeleição de Bolsonaro:
- Os “petistas”, seguidores fiéis do partido, num total de 8% do eleitorado;
- Os “progressistas”, que reúnem defensores de causas sociais, ambientais e culturais, próximo a 10%;
- Os “D/E”, formado por cerca de 30% do eleitorado que é atendido por algum programa social, principalmente no Nordeste e
- Os “liberais sociais”, em torno de 3% dos votantes que primeiro apoiaram Simone Tebet (MDB), eventualmente estiveram com Bolsonaro em 2018, mas rejeitaram a reeleição por verem riscos à democracia e às instituições do país, situados majoritamente no Sudeste.
Do outro lado, os 58,2 milhões de apoiadores do ex-presidente convergiam em tentar frear o retorno do petista ao Palácio do Planalto e são elencados em outros quatro grupos:
- Os “empreendedores”, formado por 4% dos eleitores de classe média com pequenas e médias empresas e operadores do mercado financeiro no Sul e no Sudeste;
- Os “conservadores cristãos”, os 29% de votantes ligados a igrejas evangélicas e católica que veem na esquerda uma ameaça aos valores tradicionais; as pessoas ligadas ao “agro” do Centro-Oeste e do interior do Sul e Sudeste, num total de 14% e;
- Os “fascistas”, extremistas que defendem arbitrariedades, não escondem serem preconceituosos em relação a opositores e seriam 2% do eleitorado brasileiro. As nomenclaturas e definições são todas dos autores do livro.
“Os lulistas e os bolsonaristas são dois contingentes gigantes, e a ideia aqui foi entender não só quem pode ‘mudar de lado’, mas também quem pode ajudar a construir pontes sobre o abismo que separa as duas bolhas”, diz Traumann, explicando também a ideia por trás do título da obra.
Nunes afirma que, ao dissecarem esses grupos e analisarem os dados da votação de 2022, o livro também desmente a tese de que o ex-presidente não foi reeleito por não ter conseguido tirar de Lula os votos de beneficiários de programas sociais, em especial os nordestinos.
“Bolsonaro perdeu mais votos de 2018 para 2022 no Sudeste e nas grandes capitais do país: Salvador, São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. É nessas localidades que estão os grupos de eleitores que podem migrar de um lado para o outro, e na eleição passada migraram para Lula.”
Paralelamente, o livro aponta o quanto as identidades desses diferentes grupos extrapolam a arena política e avançam em questões do dia a dia, como aumento do número de pessoas que dizem não aceitar que um filho ou filha se una a alguém do espectro político oposto.
Para as empresas, surgem os bônus e os ônus ao assumirem bandeiras que são identificadas com um ou outro lado da disputa eleitoral, ainda que se coloquem como apolíticas.
“A calcificação é um conceito mais adequado aos tempos atuais porque envolve não só a polarização política, mas também as visões de mundo e o quanto essas perspectivas vão ficando cada vez mais engessadas”, explica Nunes.
“O grande desafio é reconectar os grupos e fazer com haja diálogo mesmo entre visões tão distintas de país.”
Para chegar às conclusões do livro, os autores se debruçaram sobre os dados da série de pesquisas Genial/Quaest realizadas entre 2021 e 2022, num total de 98.880 entrevistas feitas em 27 rodadas de alcance nacional, 10 em Minas Gerais, 7 em São Paulo, 7 no Rio de Janeiro e 3 na Bahia, além de 150 grupos de discussão.
- Biografia do Abismo: Como a polarização divide famílias, desafia empresas e compromete o futuro do Brasil
- Editora Harper Collins: 240 páginas – R$ 59,90 – e-Book R$ 37,90
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