O fascinante de ser jornalista é embarcar em alguns temas que nunca imaginei estudar. De repente, estava eu buscando artigos científicos de engenharia no Google Acadêmicos. Tudo isso para tentar traduzir melhor o atual cenário da tecnologia no setor automotivo. A pergunta é: o futuro será elétrico?
Quando comecei minhas pesquisas, tinha certeza que sim. E isso sem mantém – em partes. Minhas dúvidas giravam e ainda giram mais em torno dos caminhos que seriam feitos para permitir esse avanço. E quando digo avanço, é na parte mais científica da coisa. Um motor elétrico é como um interruptor de luz. Não tem um “aquecimento”. Você pisa no acelerador e ele vai. Ele responde rápido mesmo sem grandes potências.
O aproveitamento energético é muito maior. Praticamente toda a energia que entra no motor é aproveitada. Por outro lado, um motor a combustão muito eficiente chega de 30% a 40% de aproveitamento. É muito pouco.
Existe ainda um outro fator determinante para o investimento nos elétricos. Quem me chamou atenção para esse ponto foi o professor Fernando Pinto, diretor de tecnologia e inovação da Escola Politécnica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ):
A enorme vantagem do elétrico não é quase mencionada. Diz respeito ao controle do veículo. É mais fácil controlar autonomamente o carro com motor elétrico do que o com motor a combustão. Por esta razão, acredito, teremos um progressivo aumento do uso de elétricos.
Professor Fernando Pinto, diretor de tecnologia e inovação da Escola Politécnica da UFRJ
Ou seja, se queremos evoluir para a direção autônoma, a eletrificação faz parte do caminho. Pode parecer algo muito distante de nós, mas esse investimento existe e falamos bastante aqui no Olhar Digital.
Por que eletrificar?
Aqui, vocês verão uma chuva de argumentações e muitas delas serão conflitantes. Algumas ciências são exatas. Mas, até que você chegue nessa exatidão, há muita discussão. Acadêmicos, estudos científicos, entidades e até as montadoras fazem apostas diferentes. Pensando na lógica do capitalismo, essa pluralidade é interessante. Por diferentes caminhos, a competição vai aumentar. E, quando isso acontece, existe uma grande chance de o consumidor se beneficiar. Vamos começar com o lado ecológico.
Eletrificar para descarbonizar
Sim, a eletrificação da frota é um dos caminhos para a descarbonização do setor automotivo. A segiur, vou usar dados do estudo “Comparação das emissões de gases de efeito estufa no ciclo de vida de carros de passeio a combustão e elétricos no Brasil“, feito pelo International Council on Clean Transportation (ICCT), que, traduzindo, significa Conselho Internacional do Transporte Limpo.
O setor de transportes do Brasil respondeu por 13% das emissões nacionais de gases do efeito (GEE) estufa em 2020 e foi a terceira maior fonte de emissões depois da agricultura (35%) e da mudança no uso da terra (27%). Só aqui, já percebemos que descarbonizar o setor automotivo é apenas um dos passos necessários para frear as mudanças climáticas.
O Brasil tem o objetivo de reduzir as emissões pela metade até 2030 em comparação com os níveis de 2005, além de atingir a neutralidade climática até 2050. Atualmente, o mercado de carros de passeio no Brasil é dominado por veículos movidos a combustão interna (ICEVs) flex, capazes de operar tanto com etanol hidratado quanto com gasolina C, uma mistura de gasolina com 27%,5 de etanol. Lembrando que está no Senado um PL que elevaria esse valor para 35%.
O estudo do ICCT traz números importantes para ilustrar como a eletrificação da frota ajudaria a bater essas metas. As emissões de GEE no ciclo de vida de veículos elétricos a bateria (BEVs) são, de acordo com a pesquisa, bem inferiores às de qualquer outra motorização e combustível considerados, devido à alta eficiência energética do veículo elétrico e à matriz elétrica de baixo carbono do Brasil.
Para os veículos comercializados em 2023, os BEVs têm emissões 65% a 67% mais baixas que as dos carros flex utilizando o consumo médio de gasolina C e etanol. Em contraste, os veículos elétricos híbridos (HEVs) e os veículos híbridos plugáveis (PHEVs) trazem benefícios muito limitados em termos de emissões de GEE em comparação com os carros flex.
Os HEVs têm emissões 14% mais baixas que as dos ICEVs flex quando consomem a mesma proporção de gasolina C e etanol. Os PHEVs atuais, que usam exclusivamente gasolina C, geram emissões apenas 3% menores que as dos ICEVs flex que usam a média de mercado de gasolina C e etanol.
International Council on Clean Transportation
Ok, a teoria é banaca. Mas e na prática? O Olhar Digital perguntou para as montadoras que estão no mercado brasileiro sobre metas de descarbonização e eletrificação. Você pode conferir todas as respostas nesta outra matéria. Nem todas estão aqui. Neste artigo, darei um panorama geral. Ah! E algumas montadoras não responderam. Caso um novo posicionamento chegue, vamos incluir.
Mesmo que nem todas as empresas falem em eletrificar 100% da frota, praticamente todas falam em neutralidade de carbono. O prazo das companhias para atingir esse objetivo varia entre os anos de 2040 a 2050, na média.
Algumas observações feitas por montadoras enviadas à nossa reportagem vão ilustrar bem a linha de raciocínio que estou propondo. Em primeiro lugar, ser carbono zero vai muito além de não usar gasolina e diesel como combustível. Olha só a promessa da Mercedes-Benz:
Estabelecemos a meta de tornar nossa frota de novos veículos neutra em carbono em todo o ciclo de vida dos veículos até 2039 – onze anos antes do estipulado pela legislação da União Europeia. Estamos considerando todo o ciclo de vida: desde o desenvolvimento até a rede de fornecedores, nossa própria produção, a eletrificação de nossos produtos, energia renovável durante a fase de utilização dos veículos elétricos e, finalmente, a reciclagem dos veículos para criar um ciclo de sustentabilidade circular.
Mercedes-Benz, em comunicado
E quando pensamos no processo de fabricação de veículos, dificilmente saímos da caixinha no quesito sustentabilidade. Sempre pensamos apenas na questão da matriz energética. Mas olha só o que a Ford compartilhou conosco. Você consegue imaginar a quantidade colossal de água que é despejada na produção de automóveis? A economia precisa estar em todas as etapas da fabricação:
Já reduzimos em 47% a pegada total de carbono na manufatura e outras operações. A eletricidade usada nas instalações é 70,5% livre de carbono, com a meta de chegar a 100% em 2035. Também reduzimos em 19,4% o uso de água potável desde 2019 – o equivalente a uma economia de mais de 750 bilhões de litros.
Ford, em comunicado
A Stellantis, que engloba marcas importantes no Brasil, como Citroën, Fiat, Jeep e Peugeot, destacou que a eletrificação não seria homogênea no mundo.
A tendência é a eletrificação, mas devido ao custo elevado das soluções, ela não evoluirá de modo igual em todo o mundo. China e Europa anteciparão o processo de eletrificação da frota, seguidas pelos Estados Unidos, e depois pelos demais mercados, incluindo o Brasil. À medida que a tecnologia se difunde, aumenta sua escala e os preços se tornam mais competitivos, permitindo que mais consumidores tenham acesso à nova tecnologia. No que se refere à descarbonização do processo, 45% da redução está relacionada a ações e tecnologias no produto, enquanto 55% a ações na cadeia, seja na manufatura, supply chain, logística ou infraestrutura. A Stellantis projeta que, em 2030, todos os carros de suas marcas vendidos na Europa serão elétricos, índice que será de 50% nos Estados Unidos e de 20% no Brasil.
Stellantis, em comunicado
A Honda também aposta em um período de transição:
A empresa acredita em um período de transição, em que veículos com motores de combustão interna de alta eficiência, híbridos e híbridos-flex serão um diferencial competitivo para a marca.
Honda, em comunicado
O posicionamento da Toyota me chamou bastante a atenção. A montadora japonesa aposta muito fortemente no etanol alimentando motores híbridos para seu processo de descarbonização. Como veremos, há boas razões para isso. Como disse lá no começo: a eletrificação é uma realidade e vai acontecer. A discussão está muito mais em “como” vai acontecer.
Os veículos híbridos flex produzidos e oferecidos ao mercado brasileiro desde 2019 e que, quando abastecidos com etanol, chegam a emitir 70% menos CO2 na atmosfera. Nosso compromisso é com a descarbonização, afinal, o inimigo é o carbono e não o motor a combustão. Acreditamos no potencial do Brasil para se destacar globalmente na descarbonização, especialmente com o etanol, impulsionando não apenas a sustentabilidade, mas também o progresso social e econômico. A tecnologia híbrida flex, da qual somos pioneiros, é um exemplo de como podemos oferecer opções de mobilidade sustentável adequadas às necessidades de cada região. O etanol de cana-de-açúcar é um dos biocombustíveis com a menor pegada de carbono do mundo. Uma solução limpa e renovável, e que é realidade no Brasil.
Toyota, em comunicado
Por fim, destaco também a visão da Chevrolet. Sustentabilidade não é apenas bom para o planeta. Atualmente, é bom para o negócio. E a cada geração nova, o peso da sustentabilidade será ainda maior.
A sustentabilidade não é apenas uma boa prática. É um bom negócio para a empresa, para os colaboradores e para recrutar e reter as melhores pessoas, que nos ajudarão a alcançar nossa visão.
Chevrolet, em comunicado
Em maio, conversei com Rogelio Golfarb, vice-presidente da Ford na América do Sul. E ele mostrou uma visão muito interessante sobre o futuro dos elétricos.
Quando você olha para o carro 100% elétrico, ele tem uma série de vantagens importantes. Até um terço a menos de peças e ele é muito mais eficaz energeticamente. O motor elétrico tem eficiência de 90%. De 100% da energia que entra nele, 90% ele usa para o movimento. O motor a combustão, os melhores deles, não passam de 30%. De toda energia do combustível, só 30% é usada. E há outra vantagem: os minerais das baterias são quase 100% recicláveis e sem perder quase eficiência. Então, num carro elétrico, você consegue a economia circular. Há muita coisa que direciona para o elétrico. Se você for ver, estamos na primeira, indo para a segunda geração de carros elétricos.
Rogelio Golfarb, vice-presidente da Ford na América do Sul
E como será essa segunda geração? Ele aposta em mais quilometragem, velocidades de carregamento mais rápido e melhor aerodinâmica (para melhorar a eficiência das baterias nas estradas), Tudo isso em quatro ou cinco anos.
Esse cenário impulsionará um setor que ainda está começando aqui no Brasil: a rede de postos de recarga. Investir em postos que demoram muito para carregar não parece um negócio tão vantajoso. Mas imagine quando a recarga for efetivamente rápida e as baterias forem maiores. Se em menos de meia hora você carregar uma bateria que permite uma alta quilometragem, as longas viagens rodoviárias ficarão mais baratas, mais ecológicas e sem o estresse de ficar parando muito e por muito tempo para recarregar.
Muitas das montadoras com quem conversamos já têm parcerias no setor, inclusive. Vale destacar, aqui, o caso da Volvo.
Atualmente, já é possível dirigir do Sul do Brasil até o Rio de Janeiro (aproximadamente 2.000 km) utilizando nossos eletropostos. Nosso principal objetivo é apresentar para a população que o carro elétrico já é uma realidade e que você pode, sim, ter um veículo sustentável para fazer tudo o que precisa.
Volvo, em comunicado
Outra argumentação frequente é que, por enquanto, quem tem um carro elétrico prefere carregar em casa ou no prédio onde mora. Até pelo perfil atual das baterias, que não permitem longas viagens. Agora uma reflexão pessoal: mesmo que no futuro as baterias não permitissem longas viagens, de mais de 1.000 km, por exemplo, a preços acessíveis, o carro elétrico poderia ser muito útil em cumprir o papel que faz hoje: rodar na cidade de forma mais econômica e sem emitir poluentes na atmosfera.
Parando para pensar, no meu caso, com uma autonomia de 400 km chegaria em todos os destinos que fui de carro recentemente (só precisaria recarregar no meu destino, claro). Colocando no papel, a economia com combustível e manutenção (que em regra é mais barata nos elétricos) permitiria até o aluguel de um carro a combustão para viagens mais longas. Mas, como disse, essa é uma reflexão meramente pessoal.
Mas…
Mas não se engane: eletrificar e descarbonizar não são sinônimos. De nada adianta carregar seu carrão elétrico com energia que vem de termoelétrica. E é por isso que essa discussão é tão complexa. Vamos supor que, do nada, toda frota brasileira vire elétrica.
Amanhã você acorda e, num passe de mágica, seu carro está com motor elétrico e bateria. E para suprir toda essa demanda por energia elétrica? A gente já passou por apagões sem essa demanda extra, imagine com! E mais: em caso de apagão com uma frota 100% elétrica, qual seria a solução?
Trago esse cenário hipotético porque precisamos, como sociedade, nos antecipar a futuros possíveis problemas.
Precisamos de mudanças estruturais de geração e distribuição elétrica, de melhoria de infraestrutura urbana e nas estradas, melhorar o armazenamento nas baterias, cuidar do descarte dos produtos químicos das baterias, etc…
Não consigo imaginar este cenário de maioria de veículos elétricos num prazo curto. Especialmente em países continentais como o Brasil. Imagine se toda a energia armazenada quimicamente, na gasolina, diesel ou etanol, fosse repentinamente obtida através da rede elétrica. Sem uma grande mudança na geração, não será possível.
Professor Fernando Pinto, diretor de tecnologia e inovação da Escola Politécnica da UFRJ
O professor reforça que esse cenário implicaria no aumento da geração de energia por termoelétricas, minimizando os ganhos de redução de emissões.
Apagões de fornecimento, tão comuns no Brasil, são ainda piores neste cenário. Não me refiro apenas à falta de fornecimento generalizado em grandes áreas, mas mesmo a falta de luz no seu prédio irá deixar várias pessoas privadas de sua mobilidade.
Professor Fernando Pinto, diretor de tecnologia e inovação da Escola Politécnica da UFRJ
Em junho de 2023, a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) organizou o painel “A bionergia alavancando a transição energética“. Compartilho aqui a opinião de alguns especialistas.
Hugo Cagno Filho, presidente da União Nacional da Bioenergia, foi categórico: “Os europeus apresentaram o carro elétrico como opção não poluente e foram recuperar minas de carvão para produzir a eletricidade. Essa foi a maior aberração que eu já vi”.
Vale lembrar que o carvão é o combustível fóssil mais poluente: quando queimado, emite cerca de duas vezes mais dióxido de carbono (CO2) do que o gás natural e 30% mais do que a gasolina.
Ricardo Abreu, consultor em assuntos de mobilidade da União da Indústria de Cana-de-Açúcar e Bioenergia, trouxe um ponto muito interessante, que dialoga com o que falamos no começo desta análise. O futuro é elétrico por uma razão de eficiência tecnológica. Mas esse cenário não é excludente, pelo contrário. Existem muitas formas de eletrificar uma frota e é fundamental pensar no contexto de cada país nesse processo:
Uma coisa tem que ficar clara: a mobilidade do futuro vai ser eletrificada. Isso significa que a energia que chega à roda do veículo vai ser produzida por um motor elétrico. Porque isso é muito mais eficiente, elimina uma série de componentes. E, principalmente, porque, quando o veículo é freado, é possível transformar o motor em gerador e recuperar 30% da energia gasta – energia que hoje é desperdiçada quando pisamos no freio.
No futuro, os veículos vão ter uma espécie de prancha totalmente montada com baterias e um motor elétrico em cada roda, ou em duas rodas pelo menos. Mas será preciso abastecer, de algum jeito, esse conjunto de baterias. Se forem abastecidas externamente, o veículo será 100% elétrico. Mas é possível reduzir em 80% a quantidade de baterias e colocar um gerador de eletricidade no interior do veículo: um motor de combustão interna, que abastecerá as baterias. Esse veículo será um híbrido.
Ricardo Abreu, consultor em assuntos de mobilidade da União da Indústria de Cana-de-Açúcar e Bioenergia
E é aqui que mergulharemos em algo que torna o Brasil um mercado diferente.
Etanol, o combustível completão
O etanol é mais barato do que a gasolina, rende um pouco menos e, no fim das contas, fica praticamente “elas por elas” para os motoristas a depender do estado. O consumo do etanol vem aumentando, mas a gasolina ainda é líder. É isso que aponta o Boletim Mensal de Energia referente ao mês de janeiro de 2024, divulgado em maio pelo governo federal. Segundo o Ministério de Minas e Energia, houve um aumento de 31,1% no consumo do etanol automotivo, na comparação com o mesmo período de 2023.
A maior participação do combustível renovável é um sinal positivo para o país, pois demonstra a importância e o potencial do etanol brasileiro no processo de descarbonização do setor de transporte, com consequências benéficas ao meio ambiente, como a diminuição das emissões de CO2. Os dados de janeiro também apontaram para uma redução do preço do etanol hidratado em cerca de 12%.
Ministério de Minas e Energia
Dados de fevereiro mostram que o consumo de etanol aumentou ainda mais e, o de gasolina, caiu. O gráfico a seguir, da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis, ilustra o que estamos falando.
Os números são positivos. O carro movido a etanol brasileiro é mais limpo do que muitos elétricos europeus que rodam com energia obtida com combustíveis fósseis. Tudo bem que a União Europeia vem progredindo. Sugiro que você veja os dados do Conselho do bloco, que traz gráficos mostrando de onde vem a energia de cada país. 93% da energia elétrica de Luxemburgo vem de fontes renováveis; na Dinamarca, 79%. Por outro lado, a Alemanha tem 50% de energia elétrica vindo de combustíveis fósseis; a Itália tem 63%.
A cada ano que passa, a eletricidade na UE está a tornar-se mais ecológica. A quota de energias renováveis na produção de eletricidade mais do que duplicou desde 2004, e continuará a crescer nos próximos anos, dado que a UE se comprometeu a alcançar a neutralidade climática até 2050.
Conselho Europeu
Claro que tudo isso é teoria. Mas é preciso acreditar e cobrar.
Voltando: sim, na média, o carro movido a etanol brasileiro ainda é mais ecológico do que muitos elétricos europeus.
Glaucia Mendes Souza, professora titular do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (IQ-USP) e membro da coordenação do Programa FAPESP de Pesquisa em Bioenergia (BIOEN), também participou do painel “A bionergia alavancando a transição energética”, que falamos mais para cima:
“Analisamos a situação de Brasil, Argentina, Colômbia e Guatemala, considerando inicialmente biocombustíveis que já estão estabelecidos: etanol de cana e milho, biodiesel de soja e palma. E chegamos à conclusão de que, em todos os casos, as reduções de emissões são significativas, chegando a 86%; que os produtos são competitivos com o preço do petróleo e geram empregos; e que esses países têm áreas de pastagem tais que, se quisermos duplicar a produção, conseguiremos com, em média, 5% de conversão dessas áreas em lavouras para produção de bioenergia – no caso brasileiro apenas 3%”.
Glaucia Mendes Souza, professora titular do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (IQ-USP)
A nota da FAPESP citou, ainda, estudos mostrando que, reutilizando áreas de pastagens degradadas, sem promover desmatamento, é possível multiplicar por seis a produção de biocombustíveis atual aqui no país.
No mesmo debate, Luis Fernando Cassinelli, professor de Embalagens Poliméricas no Instituto Mauá de Tecnologia e membro da coordenação do BIOEN-FAPESP, avaliou que um motor totalmente dedicado ao etanol seria ainda mais eficiente que o flex.
Estamos em uma fase de transição. Existe uma grande oportunidade para o Brasil. Nunca tivemos uma oportunidade tão boa como temos agora com a bioenergia. A área de pesquisa é extremamente importante para dar ferramentas a esse desenvolvimento. E acredito que, desta vez, ao contrário do que ocorreu em outras ocasiões, não perderemos a oportunidade.
Luis Fernando Cassinelli, professor de Embalagens Poliméricas no Instituto Mauá de Tecnologia
Mas e aí: elétrico ou etanol?
Há espaço para os dois. E vamos explicar os motivos. Em primeiro lugar, lembra da argumentação lá do começo? Quando citamos os estudos do International Council on Clean Transportation? Então. O ICCT deixa claro que a eletrificação é fundamental. Entre um carro elétrico carregado com energia limpa e um motor a combustão movido a etanol, sem dúvidas a primeira opção é melhor. Tanto no que diz respeito às emissões gerais para o planeta, quanto para o efeito local.
Se você mora em uma grande cidade, pense na via mais congestionada e barulhenta que você passa. Já pensou se ela ficasse mais silenciosa e sem aquela fumaça toda? Aqui em São Paulo, a gente pode até ver o ar que a gente respira. Com carros elétricos alimentados por energia limpa circulando, isso melhoraria muito.
Teríamos um veículo de zero emissão somado ao benefício local, de não gerar qualquer fumaça nas vias urbanas. Por mais que o etanol seja uma alternativa muito mais limpa que a gasolina, o motor a combustão não traria esse benefício local, urbano, como o motor elétrico. Ainda teríamos fumaça e barulho.
Voltando ao ICCT. A pesquisa deixa claro que os incentivos à produção de veículos elétricos a bateria no Brasil “combinariam benefícios ambientais com competitividade econômica. Não produzir BEVs coloca a indústria automotiva brasileira em risco de perder competitividade nos mercados internacionais. A produção continuada exclusivamente de veículos com motor de combustão pode resultar na redução das exportações de veículos e no aumento das importações de BEVs”.
Mas uma coisa não anula a outra. O próprio conselho reconhece a importância do etanol. De acordo com o estudo, substituir a gasolina pelo etanol à base de cana-de-açúcar reduz significativamente as emissões veiculares de gases do efeito estufa no ciclo de vida. Portanto, embora se deva priorizar a comercialização de elétricos com bateria como veículos novos, aumentar a participação do etanol no mercado em comparação com a gasolina é uma estratégia fundamental para reduzir as emissões dos veículos flex existentes no curto prazo.
Essa política deve ser muito bem acompanhada para para garantir que tal expansão não aumente sua intensidade média de carbono. Expandir a produção de etanol à base de milho, por exemplo, poderia causar impactos ambientais adversos, como o desmatamento. Em outras palavras, é preciso garantir o aumento da produção do etanol de forma responsável, como apontou a professora Glaucia Mendes de Souza.
Eu imagino um futuro de carros elétricos, mas não em menos de uns 25 anos, a partir de agora. Essa maioria certamente irá iniciar pela adoção dos veículos híbridos. O armazenamento principal sendo feito quimicamente, com combustível líquido, um armazenamento secundário em baterias menores, e energia a partir de combustão. O motor pode funcionar em seu ponto de maior eficiência, sempre, economizando combustível. O veículo realmente “limpo” é um veículo híbrido queimando combustível renovável, o etanol. O Brasil poderia ser líder nesta tecnologia, mas tem sofrido uma desindustrialização muito forte nos tempos mais recentes.
Professor Fernando Pinto, diretor de tecnologia e inovação da Escola Politécnica da UFRJ
Concluindo…
Dados do Ministério de Minas e Energia trazem um panorama bem recente das matrizes energéticas do país.
Como vemos, a nossa energia elétrica é variada e majoritariamente limpa. A tendência é de que a participação da energia solar e da eólica aumentem, diminuindo ainda mais o uso de combustíveis fósseis. É isso que mostra uma projeção do Stated Policy Scenario, da Agência Internacional de Energia (IEA), presente no estudo do International Council on Clean Transportation.
O cenário considera que a produção de eletricidade no Brasil dobrará até 2050. Assim, a participação de energias renováveis aumenta para 95% em 2030 e 97% em 2050.
Agora, batendo o martelo: eletricidade e etanol são complementares. Teremos energia limpa para abastecer uma frota 100% elétrica, sem risco de apagão? Caso a IEA estreja correta e nossa produção de energia elétrica dobre e seja quase toda limpa, esse é um ótimo começo. Mas é impossível saber se seria o suficiente para dar conta da demanda de uma frota exclusivamente elétrica. Até porque a gente nem sabe como será a tecnologia automobilística em 2050.
De qualquer forma, tendo energia limpa para abastecer elétricos de forma segura, esse é o melhor caminho. Mas precisamos ter uma bola de segurança. E mais do que isso, precisamos de uma estratégia de transição. E me parece que ter veículos híbridos que rodem com etanol é a melhor opção. Desde que, claro, esse etanol respeite as melhores práticas agrícolas.
Diante de tudo o que foi colocado aqui, de tudo que as montadoras nos passaram e dos mais recentes estudos e projeções, reforcei minha posição inicial de que em termos ambientais estamos atrasados, mas acredito que a tecnologia seja capaz de correr atrás do prejuízo. A maioria das montadoras traz metas de descarbonização claras e já iniciaram essa transição.
Globalmente, esse processo precisa ser acompanhado pela ampliação da oferta de energia renovável. E é claro que existem muitos mundos dentro de nosso planeta e isso não acontecerá de forma homogênea. Nos países mais subdesenvolvidos, essa ainda é uma discussão muito longe da realidade – assim como eletrificação da frota de automóveis.
Mas precisamos começar de algum lugar, certo? A União Europeia tem suas metas até 2050 e vem melhorando. A China, líder em emissões no mundo, tem apresentado uma retórica ambiental mais preocupada. Segundo a IEA, os investimentos em energia limpa no país representam um terço do total global. Pequim pretende atingir um pico de emissões de carbono antes de 2030 e alcançar a neutralidade até 2060. Por outro lado, o carvão continua a ser a fonte de combustível mais proeminente no leque energético da China, com a produção de carvão atingindo um máximo histórico em 2023.
Os Estados Unidos aparecem na segunda posição na lista de maiores emissores. Por lá, houve um considerável avanço na agenda verde no governo Joe Biden. Se Donald Trump voltar, o futuro é uma incógnita. Seja o futuro Democrata ou Republicano, fato é que o país ainda depende muito da energia que não é limpa.
Ou seja, o Brasil tem a faca e o queijo na mão para ser o melhor dos exemplos, oferecendo veículos elétricos e híbridos mais ecológicos. E que bom que, por diferentes caminhos, as montadoras estão apresentando soluções nesse sentido. Por enquanto, apenas a Toyota tem um motor híbrido flex por aqui, mas isso deve mudar em breve. A BYD deve anunciar uma novidade nesse sentido até o fim do ano. A Stellantis deve vir na sequência, já em 2025, com as versões micro-híbridas dos Fiat Pulse e Fastback.
A proposta (da nova plataforma) do Bio-Hybrid é potencializar as virtudes do etanol, como combustível renovável e limpo, cujo ciclo de produção absorve a maior parte de suas emissões, combinando a propulsão à base do biocombustível com sistemas elétricos.
Stellantis, em comunicado
Por isso, caro leitor, a discussão sobre carros elétricos vai muito além do “sinto falta do ronco do motor”. O futuro é elétrico. Mas não só elétrico. Ainda faltam respostas sobre nossa futura capacidade energética. E isso não significa que todas as montadoras precisam apostar em todos os caminhos aqui no Brasil. O mais importante é que, seja uma aposta em híbridos com etanol, seja nos elétricos, o consumidor e o meio ambiente se beneficiem. E as diferentes apostas convergem para um futuro mais sustentável, envolvendo toda a cadeia produtiva.
Para fechar: as cartas na manga a que me refiro no título, portanto, são nossas fontes energéticas sustentáveis, o uso do etanol como protagonista na transição e a capacidade de aumentar a produção sem precisar desmatar.