O professor de Direito Rodrigo Chemim afirmou que o poder de polícia de juízes eleitorais pode ser exercido apenas durante o período eleitoral e precipuamente contra propagandas eleitorais irregulares. Por isso, segundo ele, a atuação do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes extrapola as regras previstas tanto em resolução do próprio Tribunal Superior Eleitoral (TSE) como na jurisprudência da Corte.
Em decisão de março de 2021, por exemplo, o TSE decidiu, por unanimidade, que o juiz que decidiu pessoalmente sobre a produção de provas é suspeito e, portanto, está impedido de julgar o processo.
“A postura ativa do juiz que determina por iniciativa própria e realiza pessoalmente medida de tamanha dimensão não se conforma ao modelo constitucional de delimitação das atividades investigativas e jurisdicionais”, diz um trecho de um voto de Edson Fachin citado na decisão de 2021, que teve voto favorável de Moraes.
Em entrevista a Oeste, Chemim, que é professor do curso do mestrado em Direito da Universidade Positivo e procurador do Ministério Público do Paraná, explicou que o poder de polícia vigora durante as eleições e, mesmo no caso da resolução do TSE de 2022 que deu poder de polícia para o combate à desinformação, também restringe essa atuação para casos relativos ao período eleitoral.
Confira a entrevista concedida por Chemim a Oeste sobre o poder de polícia dos juízes eleitorais e os pedidos de Moraes ao TSE
O que é o poder de polícia dos juízes eleitorais?
A Justiça Eleitoral é uma justiça um pouco anômala, que tem uma função administrativa de gerenciar e administrar as eleições. Esse poder de polícia, que significa “poder agir sem provocação na solução das questões que se apresentem na organização das eleições”, se aplica também para a questão que envolve a propaganda eleitoral e se restringe especificamente a isso. É possível exercer um poder de polícia que se vincula, então, às “providências necessárias para inibir práticas ilegais, vedada a censura prévia sobre o teor dos programas e das matérias jornalísticas a serem exibidos na televisão, na rádio, na internet e na imprensa escrita”. Esse poder de polícia, portanto, permite que um juiz que perceba que tem uma propaganda irregular, um outdoor, por exemplo, de um determinado candidato, tome a iniciativa, de ofício, sem provocação, de determinar uma retirada dessa propaganda irregular. É uma coisa urgente, a eleição está acontecendo, então ele precisa tomar uma providência para a lisura do processo eleitoral.
Pode ser exercido depois do processo eleitoral?
Esse poder de polícia cessa, finaliza com o encerramento do processo eleitoral. Há um complemento numa outra resolução (que é a resolução 23.714 do TSE) que amplia esse poder de polícia para “enfrentamento à desinformação que atinge a integridade do processo eleitoral”. E, de novo, a regulamentação, ela se vincula ao processo eleitoral e esse poder se encerra quando o processo eleitoral acaba. Ou seja, o ministro, como presidente do Tribunal Superior Eleitoral, tinha o poder de determinar medidas, como dizia, de retirada de postagens que ele considerasse de desinformação ao processo eleitoral. Encerrada a eleição, cessa o poder de polícia dele, da justiça eleitoral.
E como o TSE julga a questão do poder de polícia?
Há uma interpretação do TSE, uma jurisprudência consolidada, num acórdão de 2021, inclusive com o voto do ministro Alexandre de Moraes, concordando com o voto do relator, que diz, literalmente, que o poder de polícia não alcança uma postura ativa do juiz para determinar a produção de provas de ofício. É só para tomar essa providência de cessar a propaganda. Agora, eu não posso tomar medidas outras cautelares, como suspensão de contas, como bloqueio de acesso à internet, como outras medidas, essas não podem ser feitas de ofício pelo juiz. O Tribunal Superior Eleitoral entende que se o juiz eleitoral— e tem decisões mais de uma nesse sentido — toma iniciativas de produzir provas de ofício no contexto do seu exercício do poder de polícia, ele torna-se suspeito para atuar no processo e deve sair e anular-se o que ele realizou em termos de produção de prova, tirando esse juiz do caso e chamando outro juiz para atuar, já que ele se tornou suspeito. A jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral é clara nesse sentido
E no caso das mensagens reveladas pela Folha de S.Paulo, o ministro Alexandre de Moraes extrapolou o poder de polícia?
O que me parece que acontece ali nas reportagens que estão vindo à tona na Folha de S.Paulo é que o ministro Alexandre de Moraes, atuando como ministro do Supremo Tribunal Federal, na condução de um inquéritos juridicamente altamente questionáveis quanto à forma de estarem sendo conduzidos, mas chancelados pelo próprio STF, à revelia de tudo que se entende como adequado numa democracia, faz uma confusão das funções de investigar, acusar e julgar. E para não parecer assim muito potente essa confusão, não querendo tomar iniciativas de ofício nesse inquérito, ele se valeu da estrutura da Justiça Eleitoral, para fazer as provocações como se elas viessem de lá, assim, de forma autônoma. Como quem diz assim: o ministro não quer tomar uma providência de ofício para não parecer que está misturando as funções, que está agindo de ofício, sem provocação, no inquérito que investiga possíveis crimes. Então, mistura as duas coisas de uma forma muito inadequada.
Mas essa dissimulação não legaliza toda a situação, ainda mais fora do período eleitoral para um inquérito que tramita no STF?
Aí que está: usar dessa forma de camuflar a origem da notícia, porque pelo que se entende as mensagens que vieram a público, em alguns casos o próprio ministro identificava o problema, pedia para um assessor que encaminhasse para o Tribunal Superior Eleitoral para que eles elaborassem um relatório, para que desse a impressão de que a notícia viesse desse relatório de forma espontânea. Em alguns casos até criando situações quando não encontrava, como é o episódio envolvendo a própria revista Oeste, quando o assessor diz “use a criatividade” para achar alguma coisa. É uma situação bizarra, absolutamente ilegal, beira práticas criminosas no sentido de forjar coisas mesmo não encontrando situações que mereceriam a atenção do Poder Judiciário. E aí isso tudo foi feito para além do período eleitoral. Tem várias vertentes de problemas aí no que está sendo noticiado.
A psicologia cognitiva explica bem isso naquilo que a gente chama de efeito perseverança: o sujeito constrói uma hipótese mental, e por mais absurda que ela seja, ele segue tentando alguma coisa que confirme. E aí vem justamente aquela frase do assessor de Moraes: “Use a criatividade, precisamos confirmar a hipótese mental.” A hipótese mental foi construída quase como quem decidiu mentalmente já é preciso punir, afirma Rodrigo Chemim
A atuação do ministro foi fora da lei?
Há aí um problema de natureza psicanalítica, não é nem jurídica. Vou invocar um professor italiano chamado Franco Cordeiro que é bem importante nessa discussão. Ele é um grande processualista penal mundial, falecido quatro anos atrás, que tem uma passagem que sintetiza bem o problema brasileiro quando analisa os juízes na inquisição, que justamente confundiam todas essas funções de investigar, acusar e julgar. “A solidão com que os inquisidores trabalham, nunca expostos ao contraditório, fora das grades dialéticas, talvez seja propício ao trabalho policialesco. Mas desenvolve quadros mentais paranoicos. Vamos chamá-lo primado das hipóteses sobre os fatos.” Essa passagem quer dizer que o sujeito passa a acreditar tanto na hipótese mental que construiu a respeito do fato, que essa hipótese se sobrepõe à realidade. O sujeito acredita tanto numa fantasia que não consegue mais enxergar a realidade. E vai em busca daquilo que confirma essa forma errada de pensar o mundo. A psicologia cognitiva explica bem isso naquilo que a gente chama de efeito perseverança: o sujeito constrói uma hipótese mental, e por mais absurda que ela seja, ele segue tentando alguma coisa que confirme. E aí vem justamente aquela frase do assessor de Moraes: “Use a criatividade, precisamos confirmar a hipótese mental.” A hipótese mental foi construída quase como quem decidiu mentalmente já é preciso punir. “Só precisamos encontrar a prova que sustente essa hipótese mental”. “Ah, não achei. Olhei a revista Oeste e não achei”. “Se vire, use a criatividade, porque nós precisamos confirmar a hipótese mental, não há outra alternativa.” Isso é o que ocorre, psicanaliticamente falando, com quem mistura as funções de investigar, acusar e julgar. É muito poder concentrado numa pessoa só, numa democracia, isso não é saudável.