Carolina Arruda sofre de dores lancinantes pelo corpo. Trata-se de uma jovem que cogita a hipótese de cometer suicídio assistido na Suíça, caso não surja um tratamento que possa aliviar seu sofrimento. Na Suíça, mediante aferição édica, você pode decidir se suicidar com todos os cuidados médicos para que não sinta nenhum sofrimento no processo. É mais que eutanásia, é suicídio mesmo. Não dá para entrar na esfera do sofrimento pessoal de Carolina ou de quem quer que seja, e em sua decisão de querer ou não continuar a viver. Mas o Estado deveria se ocupar da vontade de morrer de alguém? O Estado serve para manter alguma paz relativa entre as pessoas, construir leis que impeçam uma injustiça entre as pessoas que tem uma natureza humana ambígua. Estado serve para regular, sem entrar na liberdade pessoal de cada um, a vida harmônica entre as pessoas. Seria o caso de misericórdia do Estado matar alguém por sua livre e espontânea vontade? Ou o ato de estimular a vida seria algo a ser incentivado pelo Estado?
No Brasil, a eutanásia é proibida. Mas há complicações e ambiguidades. A ortotanásia é um método, por exemplo, que mantém vivo por aparelhos, de maneira artificial, uma pessoa que pode sobreviver anos com dor sem poder fazer algo para manter ou tirar a própria vida. Uma coisa é manter a vida, a despeito de dores físicas ou mentais, outra coisa é manter uma sobrevivência artificial sofrida em nome de uma esperança de cura de algo que possa jamais vir. A ciência, a medicina podem salvar alguém e podem prolongar o sofrimento desse alguém por tempo indeterminado. Meu avô, que tinha Alzheimer e demência, sofreu uma queda aos 95 anos. Teve um coágulo no cérebro. Os médicos disseram que ele iria virar um vegetal vivo se fizesse uma cirurgia. A família optou pela cirurgia e ele passou dois anos em estado vegetativo, olhando para o vazio. Por vezes lágrimas lhe escorriam dos olhos. Não foi opção dele. A medicina o salvou? Seus familiares o salvaram ou lhe prolongaram o sofrimento em nome da defesa de sua vida? O valor da vida se resume a estar vivo ou ter condições mínimas de dignidade de viver. E até que ponto a esperança pode se jogar no tempo quando a dor se prolonga indefinidamente?
Por outro lado, há a possibilidade da banalização da dor da existência. O cineasta Jean-Luc Godard, o mais famoso cineasta francês, optou pelo suicídio assistido na Suíça. Não tinha nada. Tinha 91 anos e mobilidade reduzida, mas estava consciente e lúcido. Apenas velho. Disse que se mataria porque não queria viver transportado por um carrinho em curto período de tempo. Os médicos da Suíça aprovaram seu suicídio. Alguém se matar por não suportar uma dor física ou espiritual já é uma temeridade. Mas alguém fazer com que outro alguém lhe preste auxílio em sua morte é responsabilizar alguém por lhe tirar a vida. É justo alguém responsabilizar sua morte a outros?
O sentido da vida é basicamente o outro. Você vive, trabalha para e por alguém sempre. Desde a educação de seu filho, você trabalha pela sua lapidação da ação de seu amor por ele. Até mesmo um pedreiro faz uma casa para outra pessoa que provavelmente jamais conhecerá. Um jornalista opina ou investiga a realidade para expandir a consciência de alguém, um poeta escreve para expandir a sensibilidade de alguém, um médico trabalha para salvar uma vida. Salvar uma vida é respeitar a opção de uma pessoa por abandoná-la em respeito à dignidade de sua dor? Mas a dor é algo que em maior ou menor medida todos experimentamos. O sentido da vida é exatamente fazer com que seu próximo sinta menos a dor de viver. De um médico a um poeta a uma mãe que olha desesperada para o choro de seu filho criança ou a dor de seu filho adulto. A função nossa é curar a dor do outro. E esse trabalho de cura ao outro em grande medida cura a nossa dor. Mas há prazeres mínimos também. Comer, ver, amar, exercer um toque. Isso pode lhe ser tirado pela vida. Optar por viver em nome do outro é uma opção nobre. Optar por morrer por não suportar uma dor lancinante é uma opção livre.
Mas fazer com que o Estado se responsabilize pela morte livre de alguém seria uma função social digna?