Sexta-feira, dia 11 de outubro, enquanto os moradores da Flórida, EUA, passavam pelo rescaldo do furacão Milton, no Brasil, diversas ocorrências de chuvas davam o sinal do começo do ano hidrológico. As imagens de satélite mostravam grandes células de trovoadas tomando vastas áreas de um corredor que se estendia pelos países da Calha Norte da América do Sul, incluindo alguns Estados do Brasil.
Sobre o território brasileiro, seus movimentos apresentaram uma circulação a partir dos Estados de Roraima e Amazonas, descendo pelo costumeiro delineamento de Noroeste-Sudeste, atingindo Acre, Rondônia, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Paraná e, no começo da noite, São Paulo. Rio de Janeiro e, especialmente, Minas Gerais receberam essas células ainda em estágio intenso. Goiás, Tocantins e Pará também não escaparam das células de trovoadas isoladas, algumas com dezenas de quilômetros. Embora tenham se apresentado de forma veloz, as chuvas causaram muitos transtornos por onde passaram.
Enquanto no setor Norte do país as chuvas foram oriundas da interferência da zona de convergência intertropical (ZCIT), que lentamente vem migrando para o Hemisfério Sul, na área tropical de sua atuação, as demais, distribuídas pelo corredor diagonal, surgiram por perturbações provocadas por um sistema frontal que se aproximava pelo Sul do Brasil. A exceção foram as trovoadas no Pará, Goiás e Tocantins, que receberam umidade proveniente do Ooceano Atlântico pelo setor Nordeste, ainda pela persistência do anticiclone que se enfraqueceu sobre os Estados desta região (Fig. 1).
Nesta fase de transição da estação de primavera, alguns contrastes de temperatura e umidade tornam o ambiente altamente propício para a formação de grandes células de trovoadas, incluindo fenômenos de escalas intermediárias, como as linhas de instabilidade (LI) ou alguns complexos convectivos de mesoescala (CCM), quando diversas células de trovoadas, cada uma composta por uma nuvem cumulonimbus (Cb), organizam-se em sistemas termodinâmicos de média complexidade.
Independentemente de serem linhas de instabilidade ou CCMs, qualquer célula de trovoada que pertença a um desses sistemas é um potencial candidato a provocar fenômenos causadores de destruição de nível médio a alto, dependendo do desenvolvimento do sistema e dos fatores intensificadores, que incluem os gradientes causados pelos contrastes citados anteriormente. Dos fenômenos elencados, além de chuvas de alta intensidade, com seus respectivos alagamentos em superfície, podemos citar os eólicos, do mais “fraco” para o mais forte: frentes de rajada, micro e macroexplosões (secas ou úmidas) e tornados.
A falta de energia em São Paulo
O evento do dia 11 de outubro apresentou células de trovoadas de rápido deslocamento e maturação, mas, em uma primeira análise, não atingiram o porte de supercélulas, o que não descarta a ocorrência de intensos ventos, especialmente as frentes de rajada (Fig. 2). Os maiores transtornos se concentraram no Estado de São Paulo, mas foi na capital que a situação ficou crítica, quando aproximadamente 3 milhões de pessoas ficaram sem energia, após uma suposta pane generalizada da distribuição da rede elétrica provocada pelos fenômenos.
Os piores momentos para o Estado de São Paulo começaram às 13h00 (16h00 UTC, Fig. 3), quando as células de trovoadas entraram pelo Oeste do Estado, enquanto outras surgiam por causa das perturbações do sistema frontal no interior, atingindo vários municípios durante seu deslocamento para Leste, em direção à capital. O clímax dos problemas na cidade de São Paulo ocorreu entre 16h30 e 19h40 (19h30 a 22h40 UTC), quando algumas trovoadas, por volta das 19h00 (22h00 UTC, Fig. 4), provocaram ventos intensos o suficiente para derrubar centenas de árvores pela cidade, além de algumas torres de transmissão e postes elétricos. Neste horário, a energia caiu, e um período de caos e pane se instaurou por dias para os 3 milhões de pessoas da capital, expondo, mais uma vez, a fragilidade dos sistemas de cunho estratégico do país.
Soa até mesmo em tom de covardia, mas precisamos traçar um paralelo entre os EUA e o Brasil. Afinal, um país que insiste em ser pobre vai gastar bilhões para sediar o carnaval fora de época da COP climática em Belém, mas não é capaz de gerir problemas básicos. Não é por falta de dinheiro, mas por incompetência e ausência de vontade, um descaso que beira a sabotagem generalizada instaurada no Brasil.
Nos EUA, o governador da Flórida, Ronald Dion DeSantis, começou os preparativos para enfrentar o furacão Milton, ocorrido no dia 10 de outubro, cinco dias antes, quando houve grande probabilidade de o sistema atingir seu Estado. Lá, a filosofia de trabalho é diferente, dividida em três grupos de períodos: preventivo, de espera e paliativo.
No período preventivo, são avaliadas as zonas necessárias de atendimento ou evacuação antecipada e equipes de serviços de assistência são alocadas para pontos estratégicos. No período de espera, todos os trabalhos são suspensos e se aguarda a conclusão do fenômeno; quando, então, no período paliativo, os posicionamentos estratégicos previamente definidos dos diversos equipamentos e equipes são postos em prática pelas ações táticas de atendimento e reconstrução, especialmente no que tange ao sistema elétrico e de abastecimento de água e combustível. São centenas de caminhões das companhias elétricas, viaturas, bombeiros e barcos disponibilizados, aguardando para entrar em ação.
Ausência de plano
No Brasil, além da total ausência de preparativos de um hipotético período preventivo ou, quando ele existe, da mínima atuação dos responsáveis em organizar algo para enfrentar a crise que desponta, muitas vezes essa situação ainda piora pelas características de rápido desenvolvimento de alguns fenômenos, os quais pegam todos de surpresa. Uma vez que as pessoas já foram tomadas pelo episódio, o que deveria ser o período de espera até terminar o evento torna-se um martírio, pois os pedidos de resolução de problemas, quando não de socorro, tomam vulto.
Foi o caso da capital de São Paulo. Algumas células de trovoadas trouxeram intensos ventos em frentes de rajada que, além de derrubarem centenas de árvores, comprometeram a rede elétrica, aparentemente em uma escala significativa. O número de ocorrências foi tão grande que os sistemas de pedidos de atendimento não deram conta, mesmo horas depois do ocorrido. Quem acionava a empresa de energia que serve à capital passou por desespero, pois o programa robótico de registro não dava sequer sinal pelas linhas telefônicas. Se a situação se apresentava sofrível na transição do período de espera para o começo do paliativo, isso nos mostrava o que havia de vir quanto à efetividade de suas atividades de recuperação.
E foi exatamente isso que aconteceu. Não havia um plano de contingência para a situação, mesmo com a alta probabilidade da ocorrência das trovoadas. Além disso, a empresa concessionária de energia pecou gravemente em atender a população simplesmente porque não apresenta a infraestrutura operacional necessária para o porte do que pretende administrar. Isso não é um “privilégio” da atualidade e nos remete aos processos altamente questionáveis das privatizações dos setores estratégicos, os quais mereceriam uma discussão ampla e despolitizada com a sociedade e com os corpos técnicos de relevante teor.
Vejamos a privatização elétrica em São Paulo. Quando a Eletropaulo foi vendida, cerca da metade do pessoal que trabalhava na empresa foi dispensada quando passou a ser administrada pela vencedora da primeira concessão. Na época, os relatos mostravam que o corte atingiu uma parte significativa do pessoal de campo e manutenção, o que acabou gerando problemas durante os períodos de intensas chuvas na capital ocorridos em alguns anos. A empresa atual, segundo relatos televisivos, teria dispensado metade do seu efetivo operacional. Como resultado, caminhões de serviço de manutenção e emergência ficaram parados nos pátios, deixando quase 3 milhões de pessoas sem energia.
A confusão foi tanta que os reparos esporádicos recuperavam a energia de forma altamente desordenada e sem sentido. Isso causou ainda mais indignação nas pessoas, pois a lógica do sistema de distribuição chamou atenção dos moradores quando a energia retornava em uma sequência de casas, mas nas vizinhas do mesmo quarteirão, não. Este fato foi constatado em ruas seguidas. Eram bairros inteiros sem energia, outros com, e outros mesclados.
Foram esses “setores” mesclados que acabaram salvando algumas vidas e reduzindo os transtornos de pessoas que literalmente necessitam de energia elétrica para viver. Os clientes de risco de morte que utilizam aparelhos para respirar, por exemplo, são devidamente cadastrados pelas empresas concessionárias para que recebam atendimento prioritário de fornecimento de energia quando manutenções na rede de distribuição são agendadas. No caso de falta de fornecimento por pane ou ação da meteorologia, eles recebem alta prioridade no atendimento; quando não, uma equipe é despachada ao local para fornecimento de gerador portátil. No evento do dia 11, que se estendeu por vários dias, verificamos relatos em que essas pessoas simplesmente foram abandonadas e tiveram de se virar. Usaram desde baterias de automóveis até ligações elétricas provisórias em vizinhos cujas residências tiveram sua energia restabelecida. Foi a solidariedade que salvou as pessoas. Concessionária e Estado serviam bananas!
Falta luz — e competência das autoridades
Claro que as “autoridades” entraram em ação e começaram as costumeiras discussões que não levam a nada, especialmente porque a mesma empresa já proporcionou esses dissabores em ocasiões anteriores, análogas ao recente caso. Na ocorrência pretérita, foi autuada em milhões de reais, mas é aí que surgem as perguntas: adianta multar alguma coisa? Ajuda o consumidor? Elas realmente pagam essas multas? Elas se adequam à necessidade real da situação? São perguntas bastante pertinentes que os nobres deputados estaduais e federais deveriam fazer na avaliação dos problemas dessa natureza e nas futuras concessões.
Transformar as cidades de um país quase totalmente tropical em selvas é outro fator culminante que gera confusão para os equipamentos urbanos, ameaça patrimônios e coloca vidas em situação de risco de morte. Toda vez que vejo um político desmiolado querendo enfiar 1 milhão de árvores em uma cidade como São Paulo ou Curitiba, achando que vai contribuir para o clima, observo quão grande foi o estrago realizado pelas escolas e universidades na mente das pessoas. Se apenas 1% dessas árvores apresentarem problemas de qualquer natureza, como doenças, lentidão ou cancelamento pela estupidez burocrática em remoção, falta de podas ou infestação de cupins, significa que teremos 10 mil árvores com alto potencial de provocar desastres urbanos, com chances medianas de ocorrências de acidentes fatais, diretos ou indiretos.
Só esse tema renderia uma boa discussão, pois o planejamento urbano no Brasil carece muito ainda de inteligência básica nas prefeituras, o que é facilmente constatável pelo número de lombadas mal construídas nas ruas. Contudo, nesse mesmo cenário acéfalo, concomitantemente querem transformar nosso urbano em “cidades inteligentes”. Costumam dizer que, para um bom entendedor, meia palavra basta. Afinal, se as prefeituras plantam árvores embaixo de fios e sobre tubulações, que inteligência querem implementar nas cidades? Os atentos ao que se figura no horizonte certamente pescaram a dica aqui.
Mais uma vez, o Brasil recebe outro “furacão”. Assim, vemos que basta qualquer fenômeno meteorológico mais intenso, e o quadro de desgraça e caos se estabelece com muita facilidade em qualquer parte do país. No caso de São Paulo, a capital mais rica da América do Sul, passaram sete dias do evento e milhares de pessoas permaneciam sem energia. Como sempre alertamos, não é por falta de dinheiro ou de conhecimento, mas de ação e atitude condizentes, realizadas por pessoas qualificadas e preparadas, com propósito e visão — algo que perdemos nos últimos 30 anos.
Verificamos também que a privatização a qualquer custo não nos serve, muito menos obter lucros dessa mesma maneira, objetivando unicamente satisfazer os acionistas da Bolsa de Nova York. Sistemas estratégicos de suprimento para a população e para as forças produtivas do Brasil precisam ser repensados antes que seja impossível reverter o quadro de desastre que se aproxima, oriundo de um processo articulado de sabotagens generalizadas que visam a oferecer apenas escassez e mais controle.
O país deveria criar uma política imutável de Estado para esses assuntos, perene aos governos transitórios, especialmente os altamente incompetentes e mercenários que vimos por décadas. Já fiz esse alerta em 2001, época do fantasioso “apagão” que gerou imposto climático disfarçado de emergencial para energia, somente para garantir lucros, sem nenhum investimento significativo. Mas, como sempre, ninguém ouviu. De fato, continuamos plantando abrolhos, mas queremos colher morangos.